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Brasil chega a 200 mil mortes por covid-19 após série de erros no combate à pandemia

Somos o segundo país do mundo com mais óbitos em números absolutos, atrás apenas dos Estados Unidos


Por Redação Educadora Publicado 07/01/2021
Foto: Lalo de Almeida/ Folhapress

Bastaram apenas 72 horas para que a vida de Tiago Cária Sartini, 38, mudasse para sempre. No intervalo de três dias, o engenheiro perdeu o pai e a mãe para covid-19.

José Luiz Sartini, 73, e Maria das Graças Cária Sartini, 69, tomavam todos os cuidados possíveis para evitar o contágio. Não foi o suficiente. “Qualquer um que minimize essa doença tem, no mínimo, um déficit cognitivo” diz o filho.

Ambos fazem parte da triste marca que o Brasil atinge nesta quinta-feira (7). Após dez meses desde o registro da primeira vítima por aqui, em 16 de março, o país contabiliza 200 mil mortes pela doença e uma série de erros no combate à pandemia, alguns deles passíveis de responsabilização do presidente da República, apontam especialistas em saúde pública e direito.

Somos o segundo país do mundo com mais óbitos em números absolutos, atrás apenas dos Estados Unidos. E, assim como lá, a condução do combate à pandemia por aqui rendeu e continua a render críticas.

Se o agora quase ex-presidente americano Donald Trump desdenhou e minimizou os efeitos do novo coronavírus em seu país, a gestão Jair Bolsonaro (sem partido) não fez diferente e até seguiu alguns exemplos, apontam os especialistas.

Negacionismo, pouco caso, incompetência, crimes contra a saúde da população e violações de tratados internacionais que colocaram o Brasil em uma situação tão delicada quanto vexaminosa são apenas alguns dos erros apontados -por ação ou omissão- que pesam contra o governo brasileiro. Isso, de acordo com a opinião de quem desde o início vive, estuda e tenta minimizar os efeitos da pandemia.

“Após o período de gestação dessa pandemia, parimos um rebento com muitos e diferentes defeitos congênitos. Alguns indeléveis”, diz a pneumologista e pesquisadora da Fiocruz Margareth Dalcolmo, uma das profissionais de saúde mais atuantes durante a pandemia.

Às 22h30 da véspera do dia em que o Brasil chegaria à nova marca recorde de óbitos, logo após terminar mais um laudo de uma vítima da covid-19, pouca coisa ainda parecia fazer sentido para ela. “Ninguém se recupera de 200 mil mortes.”

A percepção dos familiares das vítimas não é muito diferente. “Negar a doença, colocar empecilhos para o tratamento, falar que o sujeito ‘vira jacaré’ [se tomar a vacina], isso tudo é desinformar a população”, diz Tiago, ele próprio eleitor de Bolsonaro no segundo turno em 2018. “O pior é que muita gente sai replicando isso.”

O efeito disso é que, assim como as mortes se avolumaram, as informações sobre mandos e desmandos do governo federal no curso da pandemia se sucederam em velocidade assustadora. “São crimes de responsabilidade e contra a saúde pública passíveis de punição aqui e no Tribunal Penal Internacional”, diz a professora aposentada da USP Sueli Dallari, especialista em direito sanitário.

Essas são alguns dos motivos que, de acordo com especialistas ouvidos pela reportagem, nos aproximaram mais rapidamente da marca de 200 mil óbitos.

Comportamento irresponsável e negacionista do presidente Jair Bolsonaro

Desde o início da pandemia, o comportamento do presidente Jair Bolsanaro (sem partido) se destacou entre os líderes mundiais de forma negativa. Ao lado de mandatários como Donald Trump (EUA), Viktor Orbán (Hungria), Aleksandr Lukashenko (Belarus) e Gurbanguly Berdymukhamedov (Turcomenistão), o brasileiro desdenhou do potencial de letalidade do vírus, chamou a covid-19 de “gripezinha”, disse que seu povo deveria ser estudado pois mergulha no esgoto e não contrai nenhuma doença e recomendou diversas vezes o uso de coloroquina, medicamento comprovadamente ineficaz para evitar o contágio e potencialmente perigoso.

Além disso, Bolsonaro afirmou que não era coveiro para opinar sobre o elevado número de mortes, comemorou e difundiu informações falsas, como a morte de um voluntário dos testes da vacina Coronavac, desenvolvida na China em parceria com o Instituto Butantan.

“Se nossas instituições estivessem, de fato, funcionando, os processos de impeachment contra ele estariam andando na Câmara”, diz o advogado, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e diretor do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa/USP), Fernando Aith. Ele vê claras evidências de crimes de responsabilidade contra o presidente do Brasil.

É a mesma opinião da professora de ética da Faculdade de Saúde Pública da USP e pesquisadora do Cepedisa, Deisy Ventura. “Minha impressão é que o governo brasileiro quer disseminar a Covid-19 entre a população. Não se trata de incompetência, mas de uma estratégia do governo federal”, diz.

Ela exemplifica com o conteúdo do livro do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, demitido no meio da pandemia. “Há uma estratégia clara de disseminação do vírus. E essa é uma ideia eleitoral porque quanto antes acabar, mais cedo se retoma o caminho para 2022”, afirma.

A professora da USP aponta três eixos pelos quais a gestão Bolsonaro obstruiu e prejudicou o combate à Covid-19: comunicação, gestão e normas. “O governo mobilizou até mesmo a Secom [Secretaria de Comunicação] e o Ministério da Saúde para serem divulgadores de fake news. Para o discurso extremista e populista não há problema em ser contraditório”, diz. “Também agiu editando normas que consideraram serviços essenciais salões de beleza e igrejas e agiu para obstruir as respostas locais de prefeitos e governadores à pandemia.”

Falta de um plano nacional de combate à pandemia

À medida que a pandemia crescia no Brasil, ficava evidente a falta de coordenação entre o governo federal e os estados. Medidas de fechamento do comércio e divisas circulavam nas diferentes regiões do país sem que uma orientação ou norma da União pudesse esclarecer a necessidade e a viabilidade dessas ações. Em pouco tempo era clara a descoordenação que atingia o país. Em decorrência da inação da União, estados e municípios passaram a agir por conta própria. “Isso é um nítido exemplo da falta de coordenação. Até hoje não temos um plano decente, mesmo esse entregue ao STF [Supremo Tribunal Federal] é incompleto”, diz Fernando Aith.

Lockdowns, confisco de respiradores, falta de insumos para a intubação de pacientes, e agora escassez de seringas e agulhas são alguns dos exemplos da confusão causada pela falta de coordenação e erros do governo federal. “O que está acontecendo agora? Diversos prefeitos e governadores estão indo direto ao Butantan para ter acesso à vacina para suas populações”, afirma Deisy Ventura.

“Desde a saída do ministro Mandetta nunca mais fomos ouvidos pelo governo”, diz Margareth Dalcolmo. “Não por respeito ou qualquer coisa assim, mas pela necessidade de ouvir o que estão dizendo os cientistas isso deveria ocorrer.”

A pneumologista e pesquisadora da Fiocruz reforça que oportunidades factíveis foram perdidas ou ignoradas. “Por que tanta gente morreu em casa? Porque não foram usadas ferramentas simples e disponíveis como os aplicativos de celular”, diz. “Fazemos isso aqui na comunidade da Maré, com 180 mil pessoas, no meio de fuzis e por aplicativos acompanhamos os casos.”

Mudanças de ministros da Saúde em meio à crise

Para os especialistas ouvidos pela reportagem, a falta de um plano nacional de coordenação é um dos fatores diretos pela crise aberta por Bolsonaro com dois ministros da Saúde trocados em meio à pandemia. Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich entraram em rota de colisão com o presidente após darem sinais de que levariam à frente o desenvolvimento de um plano de contenção do vírus e por se negarem a chancelar o uso da cloroquina como medicamento contra a covid-19.

Mandetta deixou o governo em 16 de abril, após um ano e meio no cargo. Entre os principais pontos que levaram o ex-ministro ao limite estavam a insistência de Bolsonaro no uso de cloroquina e o “isolamento vertical” que era defendido pelo presidente mesmo sem nenhum respaldo científico.

Fora do governo, Mandetta lançou o livro “Um Paciente Chamado Brasil”. Nele, narra que o presidente ignorou completamente a pandemia, não demonstrou qualquer interesse em salvar vidas e só se preocupava com o efeito da quarentena sobre suas chances de reeleição.

Em seu lugar, assumiu Teich. Pressionado a mudar o protocolo e indicar a cloroquina para pacientes com casos de leves de Covid, pediu demissão. Deixou o cargo quase um mês depois, em 15 de maio, quando o Brasil tinha 218.223 casos e 14.817 mortes pela covid.

Desde ali, o ministério ficou sem titular. Em seu lugar, um militar da ativa, general Eduardo Pazuello, assumiu interinamente. Logo de cara, fez acenos a Bolsonaro e na contramão da ciência. O primeiro deles foi ampliar a oferta de cloroquina para casos leves.

“Essa militarização se refletiu em muitos cargos importantes do ministério que foram ocupados por pessoas desqualificadas, que não sabem o que é e como funciona o SUS”, diz Fernando Aith. “Isso é de uma irresponsabilidade muito grande.”

Insistência no uso da cloroquina

Em seu livro, o ex-ministro Mandetta afirma que Bolsonaro nunca se interessou pela capacidade da cloroquina de curar alguém. Queria que os brasileiros não ficassem em casa, voltassem a trabalhar com a falsa sensação de segurança que o medicamento daria, e assim reativassem a economia, algo que via como fundamental para aumentar suas chances de reeleição.

Em junho, o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército já havia gastado mais de R$ 1,5 milhão para ampliar em cem vezes sua produção de cloroquina.
A ampliação da produção virou alvo do Tribunal de Contas da União, que investigou suspeita de superfaturamento nas compras do Exército, além da participação do presidente em suposta má aplicação de recursos públicos, já que o medicamento nunca teve comprovação científica para tratar a covid-19.

Para os especialistas ouvidos pela reportagem, é impossível saber hoje o tamanho dos problemas que o uso do remédio trouxe para os brasileiros, e isso também é passível de responsabilização do presidente.

“Quanto esforço, tempo e dinheiro não foram gastos com remédios sem nenhuma comprovação?”, diz Margareth Dalcolmo. Sueli Dallari estava na França no início da pandemia. Por lá, diz ela, o uso do medicamento também foi discutido, mas abandonado logo que as primeiras pesquisas apontaram a ineficácia e o perigo para saúde que o remédio pode representar. “Quando cheguei aqui, em julho, era aquela fanfarronice, um horror, um desvario”, afirma.

Mau uso do orçamento da Saúde

Em novembro, pouco mais de oito meses após o início da pandemia, o governo Jair Bolsonaro (sem partido) havia deixado de gastar dinheiro reservado para contratar médicos, reestruturar hospitais, comprar testes de covid-19 para presídios e fomentar agricultura familiar para doação de alimentos, de acordo com informações de relatórios da Câmara.

Os relatórios com a execução orçamentária dos gastos previstos para o combate à Covid-19 trataram, além das ações nas regiões fortemente afetadas pela pandemia, de infraestrutura de hospitais universitários, com finalidade de criação de novos leitos, e hospitais de campanha em presídios.

Os créditos foram gerados dentro do chamado orçamento de guerra. Com ele, há flexibilização das regras fiscais. No orçamento de guerra, a pandemia conta com gastos específicos, sem as amarras habituais para a criação de uma despesa. Assim, MPs foram editadas para garantir créditos a diferentes ministérios e órgãos do governo.

“Foram dadas todas as ferramentas para o combate à pandemia, mas houve uma enorme incompetência”, diz Fernando Aith.

Obstrução das respostas locais à pandemia e ameaças aos governadores

Entre as muitas discordâncias entre o presidente e os governadores nas ações de combate à pandemia, a disputa adiantada de 2022 foi a que mais se destacou. Na corrida pela vacinação, Bolsonaro chegou a chamar o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), de lunático por ele ter defendido a obrigatoriedade da vacinação contra a covid-19 e por ter encampado um ajuste fiscal que, segundo o mandatário, aumentou tributos no estado.

Nessa disputa, o presidente desautorizou um acordo do Ministério da Saúde com o estado de São Paulo para a compra de 46 milhões de doses da Coronavac. Em resposta, Doria afirmou que era criminosa a atitude de Bolsonaro caso ele negasse o acesso a qualquer vacina aprovada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) contra a covid-19.

Essa, no entanto, não foi a única disputa em que Bolsonaro se meteu com os gestores locais. Menos de 12 horas após ter ido à televisão propor um pacto a governadores e prefeitos na crise do coronavírus, voltou a criticar governadores pelas redes sociais, colocando em xeque as medidas de isolamento social.

“O governo federal deixou a doença se disseminar e sabia que os governos locais não iriam deixar isso transbordar, adotando medidas de restrição ao deslocamento e construindo hospitais de campanha. Cenas como as da Itália [com caminhões frigoríficos ao lado dos hospitais] não se repetiram em maior escala por causa das ações locais. Isso ocorreu em 2020, mas não acredito que vá ocorrer em 2021”, afirma Deisy Ventura. O motivo? “Já não há recursos e não é ano eleitoral”, completa.

Demora para aquisição de vacinas e atraso na negociação com laboratórios

Entre os erros do governo federal na condução do combate à pandemia, pelo menos um deles ainda pode causar estragos e mais vítimas esperadas mais à frente.

Enquanto assiste a países da União Europeia, Reino Unido, Estados Unidos e até mesmo seu vizinho Argentina vacinar a população contra a covid-19, o Brasil sofre os efeitos da demora do governo federal em negociar e comprar os imunizantes no país.

“Desde o início, o ministério deveria contar com um órgão de inteligência para fazer o mapeamento do desenvolvimento das vacinas. O governo Trump fez isso, mesmo negando [por muito tempo] o tamanho da pandemia”, diz Fernando Aith. “Aqui, deitamos em berço esplêndido.”

Para Margareth Dalcolmo, o Brasil apostou corretamente na vacina da AstraZenenca, mas fechou os olhos para as outras. “Há pelo menos seis meses os países já estavam fazendo suas encomendas”, afirma.

Para quem, como Tiago, perdeu o pai e a mãe para o coronavírus, assim como para as outras famílias, fica a clara sensação de que muito do que aconteceu em suas vidas poderia ter sido evitado.

“Não precisa ser um gênio para saber que negar [o potencial destrutivo da doença] é uma imbecilidade”, afirma Tiago.

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