Impacto no uso futuro de máscaras é difícil de estimar, dizem pesquisadores
As circunstâncias, que incluem informações e fake news sobre a covid-19, e a ascensão da extrema-direita no mundo todo, podem acabar tendo efeitos contraditórios
Não é simples estimar qual vai ser o impacto da pandemia de covid-19 na memória coletiva e no comportamento das pessoas em questões como o uso ou não de máscaras nas próximas décadas.
As circunstâncias nas quais a doença emergiu, que incluem uma imensa quantidade de informações e fake news em tempo real e a ascensão da extrema-direita no mundo todo, podem acabar tendo efeitos contraditórios, avaliam pesquisadores. Isso pode ocorrer tanto para exacerbar quanto para minimizar o peso histórico do avanço do vírus.
“É claro que, do ponto de vista epidemiológico, a pandemia continua existindo. Ao mesmo tempo, socialmente, nós já estamos vivendo o pós-pandemia faz algum tempo”, pondera o sociólogo e cientista político Vinícius Rauber e Souza, doutor em políticas públicas pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e professor da Universidade de Passo Fundo (RS).
De fato, esse parece ser o consenso entre os especialistas. Agentes infecciosos raramente deixam de circular por completo na população humana, mesmo depois de produzirem imunidade natural ou morte na maior parte de suas vítimas, como acontecia antes da invenção das vacinas.
Como é difícil estabelecer uma linha objetiva e indiscutível que separe a situação de pandemia dos níveis normais de espalhamento de uma doença, é o comportamento das pessoas em relação à moléstia que frequentemente acaba definindo a classificação dela.
Há indícios de que foi isso o que aconteceu na chamada gripe espanhola, que matou dezenas de milhões de pessoas a partir de 1918. “É comum destacar as ondas de 1918 e 1919, mas em 1920 houve outra onda muito séria de gripe. Acontece que o cansaço das pessoas em relação às medidas de proteção era tão grande que nada mais sério foi feito”, diz a antropóloga Beatriz Klimeck, doutoranda em saúde coletiva na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), citando o livro “A Grande Gripe”, do historiador americano John Barry.
No caso da covid-19, a sensação de que quem passou por dois anos de pandemia pode ser a de ter convivido com ela por décadas – e isso também contribui para esse tipo de distorção ou apagamento. “É possível perceber que a facilidade de esquecimento é muito grande”, afirma a historiadora Beatriz Kushnir, do Programa de Pós-Graduação em Gestão de Documentos e Arquivos da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro).
“Muita gente agora não consegue se lembrar de como era a situação em março e abril de 2020, quando havia aquele desespero em relação a sair de casa, e agora fala em isolamento social como se fosse coisa de extraterrestre”, afirma Kushnir, que coordenou o projeto Testemunhos do Isolamento, que recolheu centenas de depoimentos de pessoas comuns sobre os primeiros meses de pandemia. Na Unicamp, a historiadora Ana Carolina Delfim Maciel coordena um trabalho similar na plataforma “Memórias Covid-19”.
Além disso, não se deve esperar que mudanças de comportamento afetem diferentes países e regiões de maneira uniforme, lembra Rauber e Souza. O sociólogo aponta que as epidemias de doenças respiratórias da primeira década do século 21, como a da gripe H1N1, fortaleceram o hábito do uso de máscaras em países como a China, mas não foram suficientes para criar a mesma cultura de proteção coletiva nos EUA, embora o país também tenha sido afetado pelo problema.
Apesar dessas barreiras, ainda é possível falar em legados da covid-19 para a saúde pública do futuro? Beatriz Klimeck diz que, em sua pesquisa de doutorado, um elemento importante que tem aparecido é a percepção da importância dos aerossóis (suspensão de pequenas partículas no ar) para a transmissão da Covid e de outras doenças respiratórias, algo que antes não estava claro nem para a própria comunidade científica.
“A ideia de que os aerossóis que são a principal forma de transmitir a doença são produzidos ao falar, cantar, gritar é uma virada muito importante e um grande ganho em termos de conhecimento de saúde pública, justamente por mostrar como é muito mais seguro ficar ao ar livre do que em ambientes fechados”, diz ela.
“Existem fotos incríveis de 1918, com aulas ao ar livre, barbeiros e cabeleireiros trabalhando em espaços abertos. É um entendimento sobre o contágio aéreo que a gente pode recuperar.”
Ao menos no Brasil, o prestígio da vacinação como forma de prevenção também sai relativamente intacto dos anos de pandemia, apesar do negacionismo propagado pelo presidente Jair Bolsonaro e seus aliados.
Isso é resultado de uma cultura institucional em favor da vacinação que dura quatro décadas, afirma Beatriz Kushnir. “Temos aquela imagem do Serra vacinando o Lula, mostrando que isso sempre extrapolou barreiras partidárias.”
Apesar disso, não está claro até que ponto a memória do que aconteceu nestes anos de pandemia vai ser capaz de marcar a consciência histórica das próximas gerações. “Se nem os horrores da Segunda Guerra Mundial conseguiram mudar a forma de as pessoas viverem em sociedade, não dá para dizer que a covid-19 teria esse efeito”, diz Kushnir.
Por outro lado, a experiência de enfrentar uma doença totalmente desconhecida é algo que a maioria das sociedades do século 21 ainda não tinha experimentado.
“Em 1918, na época da gripe espanhola, as pessoas morriam de doenças infecciosas o tempo todo, então havia uma certa familiaridade com isso. Já a covid mudou a vida de todo mundo por muito tempo, e isso não vai ser esquecido”, afirmou John Barry à revista Scientific American.
✅ Curtiu e quer receber mais notícias no seu celular? Clique aqui e siga o Canal eLimeira Notícias no WhatsApp.