Música de Caymmi vira provocação contra Palmeiras por Mundial
Parte da melodia de "História pro Sinhozinho" tem sido usada por rivais do Palmeiras
Em março de 1947, Dorival Caymmi viveu uma espécie de internação forçada no sítio de Jorge Amado, que enclausurou o amigo para que ele terminasse canções encomendadas para um espetáculo teatral. Entre as notas musicais que brotaram do retiro em Nova Iguaçu, estão algumas que ganharam os estádios de futebol mais de 70 anos depois.
Parte da melodia de “História pro Sinhozinho” tem sido usada por rivais do Palmeiras. O que era um trecho singelo, inicialmente sem letra, virou “o Palmeiras não tem Mundial, não tem Copinha, não tem Mundial”, grito que pôde ser ouvido no Maracanã, no dia 1º de setembro, entoado pela torcida do Flamengo na vitória sobre a equipe alviverde por 3 a 0.
A provocação faz referência ao fato de o time paulista jamais ter conquistado a Copa São Paulo de juniores, a tradicional Copinha. E tripudia também sobre seu desempenho no Mundial, ignorando as tentativas do clube de ver reconhecido o triunfo obtido na Copa Rio de 1951 como um título dessa grandeza.
“Que coisa incrível! Incrível!”, disse Danilo Caymmi, 71, ao ver um dos vídeos com a cantoria, exibido a ele pela reportagem. “É impressionante como a música tem durabilidade. Graças a Deus, nós, os Caymmi, temos essa sorte de fazer músicas que duram muito, vão passando de geração para geração. Se ele estivesse vivo, vibraria com isso. Pô, demais, cara!”, acrescentou o filho de Dorival.
A canção original foi composta pelo artista baiano quando ele estava para completar 33 anos. Perto do Rio de Janeiro, no referido sítio do escritor Jorge Amado, o compositor trabalhou na trilha sonora da peça “Terras do Sem Fim”, adaptação de Graça Mello de um livro de mesmo nome criado pelo próprio Jorge.
“História pro Sinhozinho” narra a noite de um garoto que, “na hora em que o sol se esconde e o sono chega, […] vai procurar a velha de colo quente”. Sinhá Zefa, então, “canta quadras”, “vai murmurando histórias para ninar” e acaba, ela mesma, “por cochilar”.
“Na Bahia, na infância dele, papai chegou a conviver com essas amas de leite, que contavam essas histórias. Tem uma parte da música, que provavelmente é em iorubá, na qual a Sinhá Zefa conta uma delas. É uma lenda, contada pelas escravas libertas do início do século passado, do final do século retrasado”, afirmou Danilo Caymmi, também músico.
O relato feito por Sinhá Zefa é “trágico para caramba”, observa Danilo. Um menino pede ao pai que mergulhe no rio para lhe trazer um peixe, mas as tentativas de agradar ao jovem não dão resultado. A resposta para a pergunta “peixe é esse, meu filho?” é sempre “não, meu pai”, e o esforço acaba em afogamento.
Nem por isso o acalanto se torna menos doce ou menos apropriado para o público infantil. Em 1977, quando a Rede Globo decidiu levar à televisão as histórias do “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, de Monteiro Lobato, Caymmi trocou Sinhá Zefa por Sinhá Nastácia, personagem da série de livros de Lobato, transformando “História pro Sinhozinho” em “Tia Nastácia”.
Na versão moderna do “Sítio”, produzida pela Globo a partir de 2001, a gravação de “Tia Nastácia” ficou a cargo do cantor Zeca Pagodinho, o que deu à música uma porta de entrada para as rodas de samba. Mais recentemente, a canção se tornou sucesso do grupo de pagode BalacoBaco, que a incluiu em seu DVD de 2015.
A proximidade do samba com o futebol torna possível imaginar o caminho feito das rodas aos campos, embora o trajeto não esteja tão claro. A paródia provocativa ao Palmeiras, ao que tudo indica, partiu de torcedores do Corinthians, que passaram a cantá-la em ambientes distantes do estádio, como as próprias rodas de samba.
Em junho, Romarinho, hoje jogador do saudita Al-Ittihad, famoso por fazer gols contra o Palmeiras nos tempos de Corinthians e zombar dos alviverdes, publicou vídeos entoando os versos debochados. No mês passado, em ação promocional no estádio alvinegro, em Itaquera, após o clássico contra o Palmeiras, o ex-goleiro Ronaldo repetiu o gesto ao microfone.
Toda a brincadeira ganhou força quando o Palmeiras foi eliminado da Copa Libertadores, há duas semanas, o que interrompeu seu caminho até o Mundial de Clubes deste ano e fez a piada se multiplicar. Surgiram várias versões, como uma montagem na qual Sornoza, Pedrinho e Mateus Vital, atletas do Corinthians, tocam pandeiro ao som do pastiche.
Foi nesse momento que a equipe alviverde foi enfrentar o Flamengo, no Rio de Janeiro, e a vitória por 3 a 0 dos rubro-negros criou o ambiente perfeito para a pilhéria. Assim, em um trajeto de 72 anos, a obra criada a pedido de Jorge Amado saiu de Nova Iguaçu, passou pelo Sítio do Pica-Pau Amarelo e chegou ao Maracanã.
O flamenguista Caymmi, que morreu em 2008, aos 94 anos, aprovaria.
“Ele vibraria, com certeza. A função do compositor é essa. Papai gostaria de ter feito ‘Ciranda, Cirandinha’, sempre falava isso. O objetivo dele era ter a música popular. Convivi com grandes compositores. Meu pai, como o Tom [Jobim] também, sempre estava a fim de ter reconhecimento nesse nível popular”, concluiu Danilo Caymmi.
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