Sonhos são recorrentes em períodos traumáticos, caso da pandemia de coronavírus
A experiência de sonhos com os mesmos temas também foi observada em uma pesquisa com relatos de pessoas que estiveram em situações de conflitos, como sobreviventes da Segunda Guerra Mundial e de confrontos na Faixa de Gaza
No começo do isolamento social, a designer de interação Viviane Tavares, 25, quase não sonhava. Em pouco tempo de quarentena, no entanto, ela passou a perceber ter sempre o mesmo sonho. Nele, sua rotina programada para o próximo dia era vivida da maneira com que aconteceria se ela pudesse sair na rua.
“Tinha dinâmicas que eu ia fazer remotamente no dia seguinte, mas eu sonhava que estava acontecendo lá, no espaço do trabalho”, conta.
Tavares não é a única a sentir esses sonhos de forma mais frequente e a relacioná-los à pandemia de coronavírus.
“Uma das coisas que estão acontecendo hoje é que as pessoas estão sonhando muito”, afirma Paulo Endo, psicanalista e professor livre-docente da Universidade de São Paulo (USP).
Ele coordena uma pesquisa batizada de Inventário de Sonhos, que recolhe, em uma plataforma online, relatos de sonhos nesse período para serem analisadas posteriormente. Em 24 horas, o projeto recebeu 80 depoimentos.
O inventário se inspira em outros trabalhos feitos em períodos traumáticos, como o Apartheid Project, que recolheu testemunhos relativos a experiências vividas durante o apartheid, na África do Sul, e “O Terceiro Reich dos Sonhos”, livro da pesquisadora Charlotte Beradt que reúne sonhos da época do holocausto.
Neste último, a autora afirma que “os sonhos são os sismógrafos do tempo presente”.
“Tem coisas que estamos vivendo, e que já estão aparecendo no mundo inteiro, que é o que aparece em cenários de ditadura, totalitarismo ou guerra, quando as pessoas não podem acessar os elementos básicos, materiais, sociais e públicos para elaborar a morte do seu morto”, explica o psicanalista. “Achamos que o sonho é um produto extraordinário porque ele pensa em uma outra lógica que, em vigília, nós não conseguimos pensar.”
Um dos sonhos que ele cita como exemplo foi vivido em Auschwitz. Nele, um pequeno empresário judeu sonha que quando Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, entra em seu negócio, ele passa horas tentando levantar a mão para fazer a saudação nazista.
Ele relata que sentia tanta dor no braço que, ao acordar, sentiu a mesma dor física.
Quando o judeu finalmente consegue estendê-lo, no sonho, Goebbels disse: “Essa sua saudação, eu desprezo” e deixou o local. Endo explica que o episódio demarca o profundo conflito social e humilhação que o sujeito vivia.
“Hoje, há uma unanimidade dos perigos que corremos e, por outro lado, a liderança nacional fala o contrário”, diz sobre o momento de pandemia.
“Necessariamente, você cria uma experiencia psíquica paradoxal. E onde caberia isso na experiência? No sonho. É aquela construção de natureza surreal em que cabem todos os paradoxos que tentamos vencer quando estamos fazendo uma análise.”
Elie Cheniaux, professor titular de psiquiatria da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), explica que os pensamentos que temos acordados se repetem durante o sono. A diferença é que, durante a vivência onírica, os sentimentos são traduzidos em uma linguagem visual.
“Eles são uma realidade virtual em que a gente testa possibilidades de ação. Ele não tem só nossas memórias mas também nossos planejamentos e vontades”, afirma.
O designer gráfico Renato Freddi, 26, conta que um dos sonhos que teve durante o isolamento foi sobre reencontrar amigos. Ele mora em um prédio com uma planta em H, em que é possível ver janelas do outro lado.
Nesse universo onírico, havia uma espécie de marquise na beirada das janelas que permitia que amigos do outro lado pudessem entrar em seu quarto.
“Não ando tendo tédio ou odiando ficar em casa em si, mas tenho saudade de ver alguns amigos, e poder chamá-los aqui em casa. Era uma coisa que me agradava antes da quarentena e agora está impossível”, conta.
Natália Mota, psiquiatra e pesquisadora do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, afirma que estamos passando por um trauma coletivo e por uma série de lutos: de vida, de oportunidade, de perspectiva de futuro.
“Sonhar é um processo de digestão de emoções. É uma forma de ter um aprendizado de como se proteger de um determinado evento. Mas quando você tem um trauma muito significativo, muito negativo, é como se tivesse comido algo muito indigesto. Então ele fica lá, repetitivo”, explica.
Ela também tem recolhido relatos de sonhos durante a pandemia e explica que um dos fenômenos de períodos como o que estamos vivendo é que os assuntos passam a ser similares.
Entre os testemunhos que recebeu, um deles era o de um casal que afirmava ter tido o mesmo sonho na mesma noite.
Essa experiência com os mesmos temas, conta a psicanalista, também foi observada em uma pesquisa com relatos de crianças que viviam na faixa de Gaza.
Monica Levy Andersen, diretora de pesquisa do Instituto do Sono, explica que um dos motivos de termos a sensação de estarmos sonhando mais é que só lembramos de um sonho quando acordamos do meio para o final deles.
“Como muitas pessoas estão com o sono alterado, elas acordam mais vezes a durante a noite”, conta.
Ela cita a falta de exposição à luz, falta de fatores estimulantes (como pegar um transporte ao trabalho e se relacionar com colegas pessoalmente) e o estresse de uma convivência mais intensa com os moradores de uma mesma casa como fatores que nos deixam mais despertos durante a noite.
Outro fenômeno que ela observa é o do chamado atraso de fase, em que se dorme e também se acorda mais tarde que o natural. “Nossa vida mudou radicalmente e isso muda nossa rotina”, afirma.
O estudante de ciências sociais Jonathan Pecho, 21, conta que seu sono desregulou desde o começo do isolamento social e que também tem sonhado com mais frequência.
Um dos sonhos que ele mais se recorda neste período acontece submerso.
Ele conta que lembra de estar no mar e ter capacidade de respirar embaixo d’água e de se movimentar pelo oceano com facilidade. Quando acorda, sente uma sensação de liberdade, afirma.
Apesar de ainda não ter análises dos depoimentos que está recolhendo, Endo afirma que uma situação importante do cenário pós-pandemia é a desdobramento que os sentimentos provocados pela pandemia terão no corpo social.
A impossibilidade de velar os mortos e o sentimento de medo são dois assuntos frequentes.
“O funeral é isso: as pessoas concordam, não aceitam muitas vezes, mas se realizam que aquele morto morreu. Elas estão juntas ali pra suportar essa aceitação”, explica.
Ele conta que um dos relatos de sonho que estudou foi da mãe de um desaparecido da ditadura militar. Ela sonhava, quase diariamente, que seu filho chegava pela porta da frente de casa. Acordada, toda vez que escutava o som da maçaneta pensava nesse seu filho chegando.
“Não foi dada a ela possibilidade de lutar seu morto. Isso deixa marcas, que se recolhem ao universo privado, mas que pode também ser uma resposta social, violenta, de vingança”, exemplifica.
Analisar esse universo onírico, algo individual e privado, pode ser uma possibilidade de dar uma dimensão pública, social, política e poética do momento que vivemos, conclui o pesquisador.
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