STF julga legalidade de bloqueios de WhatsApp pela Justiça
Estão na pauta duas ações originadas em 2016, que questionam a constitucionalidade do bloqueio de aplicativos de mensagem
O Supremo Tribunal Federal (STF) vai começar a julgar nesta quarta-feira (20), se os tribunais brasileiros podem impedir o funcionamento do WhatsApp, e outros aplicativos de mensagens, em todo o País. Estão na pauta duas ações originadas em 2016, que questionam a constitucionalidade do bloqueio de aplicativos de mensagem. Caso a corte decida pela legalidade dos bloqueios, a privacidade dos usuários nessas plataformas pode ficar ameaçada, argumentam especialistas em direito digital.
Uma das ações, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 403, foi protocolada pelo partido Cidadania (na época, ainda conhecido pela sigla PPS) após um juíz de primeira instância de Sergipe determinar que as operadoras de celular bloqueassem o WhatsApp por 72 horas – a ordem foi derrubada 24 horas depois. Segundo o magistrado, o Facebook, proprietário do app de mensagens, havia se recusado a colaborar com a investigação sobre tráfico de drogas.
O juiz queria acesso ao conteúdo de mensagens trocadas no aplicativo, o que o WhatsApp diz ser impossível fornecer por conta da criptografia de ponta a ponta que usa em seus serviços. Com o descumprimento da ordem judicial, o juiz determinou o bloqueio do serviço usando como argumentos os artigos 11, 12, 13 e 15 do Marco Civil da Internet (MCI), que trata da guarda de registros de acesso por provedores de serviços online. Na sequência do bloqueio, o Partido Liberal (Partido da República, na época) questionou por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5527.
No centro da discussão, estão a importância do conteúdo para investigações e a utilização de criptografia para proteger as comunicações no País. Membros da Polícia Federal e do Ministério Público consideram vitais o acesso do conteúdo de mensagens. Casos de pornografia infantil estão sempre entre os exemplos citados por eles.
Permitir, porém, o bloqueio desses serviços poderia enfraquecer a criptografia de dispositivos e serviços, tecnologia que protege não apenas as comunicações que ocorrem na internet, mas também transações bancárias no meio digital. Em relação a essas ações, a preservação da criptografia foi o principal tema debatido pela corte nos últimos quatro anos.
No caso do WhatsApp, que tem 120 milhões de usuários no País, a criptografia age da seguinte forma: quando uma mensagem é disparada, ela é ‘embaralhada’ para trafegar pela rede, e só se torna legível quando chega no aparelho de destino. O WhatsApp afirma não ter como interceptar esse o conteúdo, pois o ‘embaralhamento’ é realizado e decodificado apenas nos celulares envolvidos na conversa. Modificar essa tecnologia poderia tornar vulneráveis à interceptação as comunicações de qualquer cidadão.
O Facebook argumenta também que já colabora com investigações fornecendo ‘metadados’, informações registradas sobre uma comunicação. Os metadados, por exemplo, registram quando um número conversa com outro. É como se os Correios apontassem que uma pessoa mandou uma carta para a outra em uma determinada data, procedimento que dispensa a abertura de envelopes. Dessa maneira, o WhatsApp conseguiria prever a rede de comunicações de um usuário.
Dentro da empresa, apurou o Estadão, a impressão é de que o número de pedidos da Justiça que pedem acesso a conteúdo diminuiu desde os bloqueios em 2016 – de modo geral, os metadados, e outras informações, estariam satisfazendo os pedidos de colaboração.
Desde 2016, o STF promoveu duas audiências públicas sobre o tema Em uma delas, em 2017, Brian Acton, um dos cofundadores do WhatsApp, reafirmou a importância de preservação da criptografia, e a dificuldade em obter conteúdos criptografados. Acton deixou o Facebook ainda em 2017 – entre um dos motivos, estaria o apetite de Mark Zuckerberg para enfraquecer a criptografia do serviço para fins comerciais.
Entre os especialistas ouvidos pelo Estadão, existe a impressão de que o STF deve considerar inconstitucional o bloqueio dos serviços. “O que o Marco Civil determina é a possibilidade de que aqueles que não cumprirem as leis sobre privacidade no Brasil venham a ser advertidos, multados ou mesmo tenham a suspensão ou o encerramento das atividades de coleta de dados pessoais. Não existe no MCI a previsão de bloqueio de aplicações como um todo”, explica Carlos Affonso de Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio)
“A tese por parte da Polícia Federal não pode prosperar. O julgamento no começo do mês sobre o repasse dos dados das operadoras para o IBGE abriu um precedente, no qual se afirmou o direito à proteção de dados pessoais. Ministros como Edson Fachin deram votos muito importantes nesse sentido”, explica Rafael Zanatta, coordenador de pesquisas do Data Privacy Brasil. Fachin é o relator da ADPF 403.
Existe, porém, a chance de que o clima político de Brasília possa influenciar nas discussões. Atualmente, o WhatsApp está no centro da CPI das fake news, e o STF é alvo constante dessas mesmas redes de conteúdos mentirosos. O contexto é bastante diferente do início das discussões.
Os defensores de privacidade e direitos humanos na rede dizem que os metadados são suficientes para investigações criminais. “Na maioria dos casos de pornografia infantil, o conteúdo só prova a materialidade do crime, não prova a autoria. A autoria é provada por metadados, que não estão criptografados”, explica Thiago Tavares, presidente da ONG SaferNet, que combate violações aos direitos humanos na internet. “A polícia pode promover investigações sofisticadas usando metadados, como foi feito no caso Marielle”, diz Zanatta.
Outro argumento é o de que bloquear um serviço inteiro por causa de situações específicas seria desproporcional na relação nos direitos dos cidadãos. “É preciso separar a tecnologia da forma pela qual ela é usada. Bandidos podem usar um app de mensagens criptografadas para conversar? Claro que sim, mas isso não transforma a tecnologia em algo ilícito, assim como os golpes por telefone que fingem sequestros de parentes não fazem da telefonia uma tecnologia fora da lei. É preciso focar em meios para tornar as investigações policiais mais eficientes”, explica Souza.
Na noite de terça (19), o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, emitiu um parecer no qual se posiciona contra o bloqueio de aplicativos de mensagem para o cumprimento de ordens judiciais. Na visão dele, a medida é desproporcional e viola as liberdades comunicativas.
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