Futebol tenta dar novas perspectivas a jovens da Fundação Casa
Os vencedores regionais avançam à fase estadual, na qual, por meio de uma parceria com a Federação Paulista de Futebol, os jogos são disputados como preliminares de duelos do Campeonato Paulista profissional
A derrota na final regional da Copa Casa, torneio entre unidades da Fundação Casa (a antiga Febem, entidade para internação de jovens que cometeram atos infracionais no estado de São Paulo), não atormentou o lateral direito do Ouro Preto.
“Um a um. Ganhamos uma deles, eles, uma de nós”, afirmou o garoto de 17 anos. Assim como os demais jovens entrevistados para esta reportagem, ele terá seu nome preservado. Meses antes, no torneio de futebol de salão, o desfecho diante do time Casa Nova Vida havia sido o inverso.
Há quatro meses internado, o lateral foi quem mais tentou ver o lado bom do revés. Essa mentalidade deixou orgulhoso Zé Maria, ídolo do Corinthians e que trabalha para a fundação como patrono do projeto.
“Eles [jovens] começam a criar expectativas positivas”, diz o ex-jogador que, aos 70 anos, tenta passar aos jovens os aprendizados que teve em Botucatu (interior de São Paulo), sua cidade natal, e nos maiores estádios do Brasil.
“O futebol me tirou da roça, me deu oportunidade. Estudar ou jogar bola? Fiz os dois. Dá para mostrar para eles que dá para fazer as duas coisas. Agora, eles podem estudar e procurar uma profissão, além de ter sua atividade esportiva”, afirma o ex-lateral-direito, apelidado de Super Zé.
A Copa Casa está na sua 16ª edição. Reúne mais de 1.200 jovens, de 80 centros de internação. Na fase inicial, as equipes fazem partidas de mata-mata contra outras unidades da mesma região.
Os vencedores regionais avançam à fase estadual, na qual, por meio de uma parceria com a Federação Paulista de Futebol, os jogos são disputados como preliminares de duelos do Campeonato Paulista profissional -os jovens ficam no estádio para assistir às partidas.
Na confronto acompanhado pela reportagem, o treinador do Ouro Preto teve o desafio de fazer com que os garotos aplicassem, em um campo de grama sintética que mal conheciam, aquilo que foi treinado numa pequena quadra de cimento.
O campeonato mobiliza toda a unidade. Os funcionários trabalharam para garantir a segurança durante a saída e também viraram torcedores.
Nos vestiários, os jovens rezaram e entoaram gritos de incentivo. Quando a bola rolou, em que pesem alguns passes errados e outras tantas trombadas, o respeito prevaleceu. Eles sabem que entrar em briga, por exemplo, os tira o direito de participar de atividades externas.
Acabado o jogo, todos se perfilaram lado a lado, ouviram as palavras de Zé Maria e se cumprimentaram.
Após a partida, a reportagem conversou com três jovens. Dois deles já perderam o pai. Um também perdeu a irmã, e outro, o irmão.
“Penso em ter um time de futebol e ajudar a criançada na periferia, porque muitos vão para o crime. Quero ajudar essas pessoas para que nunca se envolvam também”, projeta o camisa 10 que, aos 18 anos e em sua terceira internação, pretende cursar educação física quando sair da unidade.
Já o atacante de 19 anos recentemente teve sua saída autorizada pela Justiça e espera trâmites burocráticos para concretizá-la. Ganhou um curso profissionalizante de eletricista, que pretende fazer quando deixar a fundação.
Segundo balanço mais recente, a Fundação Casa atende mais de 7.000 jovens, sendo que ao menos 5.700 estão em regime de internação nos 142 centros espalhados por 52 cidades do estado de São Paulo.
Sete em cada dez internos são negros. Os homens representam 95% do total, 71% com 15 a 17 anos -a idade máxima para cumprir pena na instituição é de 21, por infrações cometidas até os 18 incompletos.
As ocorrências de tráfico de drogas e de roubo qualificado são, de longe, as mais comuns: combinam para 4 a cada 5 registros.
Para incentivar os jovens, Zé Maria leva ex-atletas e profissionais renomados que conheceu ao longo da carreira para dar palestras. Dentre os que já conversaram com os internos estão Ademir da Guia, Walter Casagrande, Carlos Alberto Parreira, Tite e Rivellino.
O professor de saúde coletiva da Santa Casa de São Paulo, Paulo Malvasi, vê como positiva medidas que estimulem a prática esportiva e que façam o interno circular fora da unidade, mas questiona o fato de não haver uma política de inserção produtiva para os jovens na sociedade, além de medidas paliativas.
“Não tenho dúvida que ter a presença de um jogador de futebol dá aos internos a possibilidade de sonhar, mas, em termos de política pública, essa é uma ação específica e que não dá norte de um projeto para a juventude”, afirma.
Paulo Dimas Mascaretti, secretário de Justiça do estado de São Paulo e presidente da Fundação Casa, diz que o torneio é apenas um dentre muito projetos esportivos, educativos e culturais oferecidos.
A chegada de Zé Maria à entidade se deu após uma breve carreira política. Em 1983, quando o clube vivia os tempos da Democracia Corinthiana, ele foi eleito pelos companheiros como técnico da equipe.
Durou poucos jogos no posto e decidiu se aposentar. Naquele mesmo ano, com o Brasil em plena transformação política dos últimos anos da Ditadura Militar, iniciou um mandato como vereador paulista, pelo então PMDB.
Quando deixou a Câmara, começou trabalhos em parcerias com secretarias municipais e estaduais, até se estabilizar na Fundação Casa.
Ele lembra que já foram realizados jogos em estádios como Morumbi, Pacaembu, Javari, Parque Antártica e Parque São Jorge.
Nos 16 anos da Copa Casa, Zé Maria teve que lidar com fuga de internos. Em seu segundo ano, viu 6 de 18 jogadores escaparem durante uma atividade no Parque do Ibirapuera. Ficou quase 30 dias suspenso do trabalho, mas diz que percalços como esses servem para o projeto amadurecer.
“Em todas as competições até agora, [aparece alguém que diz] ‘traz o menino para treinar com a gente, traz o 10 que ele é bom’. Então, graças a isso, eles criam oportunidade e têm visibilidade”, afirma.
Foi por meio da Copa Casa que Luan Campos, por exemplo, chegou às categorias do Palmeiras, onde joga atualmente. Essa chance, mesmo que rara, pode ser valiosa para uma parcela da população.
“Essa vida não dá mais não, ou é cadeia, ou caixão”, finaliza o lateral direito do Ouro Preto.
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