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Indígenas se queixam de apelido ‘Bugre’ usado pelo Guarani

"De fato, 'bugre' é um termo pejorativo ('rude', 'primário', 'incivilizado', 'selvagem'), associado aos povos nativos pelo colonizador português", explica Thaís Nicoleti, consultora de língua portuguesa da Folha


Por Folhapress Publicado 27/09/2020
Foto: Divulgação/ Guarani Futebol Clube

Graciela é Guarani, com orgulho, mas não é bugre. Ela é um dos indígenas brasileiros com aversão à palavra que a torcida do Guarani grita, também com orgulho, enquanto canta seu hino: “Avante, avante, meu Bugre”.

Graciela Guarani, 34, conhece a origem do vocábulo. Mesmo que não conhecesse, teria percebido que não se trata de um elogio ao crescer no Mato Grosso do Sul, habituando-se a ouvir construções como “bugres sujos”, “cabelo de bugrinha suja” e similares.

“A palavra bugre é racista e sempre vai ser, por ser um termo que grande parte da sociedade perpetua para condicionar o ser originário como inferior”, diz a produtora cultural. “É vil, racista, muito cruel. É usado para nos desumanizar, a partir do momento em que nos consideram sem alma, selvagens e pagãos.

Lutar contra o uso do termo e contra sua normalização sempre foi difícil, mas uma esperança surgiu nos movimentos antirracistas desencadeados neste ano, principalmente, a partir da morte do negro George Floyd nos Estados Unidos. Ele foi asfixiado pelo joelho de um policial branco e fez vir à superfície uma série de questionamentos.

Um deles era referente ao nome do tradicional time de futebol americano da capital, Washington Redskins, ofensivo aos povos indígenas da América do Norte. “Red skin”, ou “pele vermelha”, já foi o termo usado para designar o escalpo, o couro cabeludo arrancado do crânio dos indígenas mortos no período em que seu extermínio era política governamental.

Pressionado pelos movimentos e por patrocinadores, o Washington Redskins topou mudar de nome. Na temporada recém-iniciada, a equipe vem atuando provisoriamente como Washington Football Team, enquanto discute a identidade que assumirá.

No Brasil, não há contestação ao Guarani Futebol Clube, fundado em 1911 como Guarany Foot-Ball Club. O nome da equipe foi escolhido por causa de Carlos Gomes, célebre compositor nascido em Campinas “”autor da ópera “O Guarani”, baseada no livro homônimo de José de Alencar. O que os indígenas questionam é o apelido Bugre.

“Bugre seria o mesmo que chamar alguém de selvagem. É uma palavra usada no sentido pejorativo, para ofender um indígena. Qualquer um que chama um indígena de bugre está o ofendendo da forma mais desumana”, diz Kellen Natalice Vilharva, 25, outra que se irrita com o apelido do campeão brasileiro de 1978.

“Infelizmente, a forma que o Brasil foi invadido, com as terras indígenas roubadas, tem consequências até hoje. Bugres, preguiçosos, invasores e várias outras palavras se usam comumente, e as pessoas nem sabem o que significam”, afirma a bióloga, jovem liderança guarani kaiowá.

A construção do apelido Bugre foi feita por associação ao nome do time, usado quase como um sinônimo. Não foi como Porco ou Urubu, xingamentos transformados em identidade pelos torcedores de Palmeiras e Flamengo, respectivamente, como mecanismos de defesa. Não há dúvida, porém, de que a carga semântica da palavra seja historicamente negativa.

“De fato, ‘bugre’ é um termo pejorativo (‘rude’, ‘primário’, ‘incivilizado’, ‘selvagem’), associado aos povos nativos pelo colonizador português”, explica Thaís Nicoleti, consultora de língua portuguesa da Folha.

Luís Augusto De Mola Guisard, 59, também fez esse trajeto histórico ao escrever “O bugre: um João-Ninguém”. Na dissertação de mestrado, o sociólogo foi até os bogomilos “”tidos como heréticos por negar os rituais da Igreja Católica no século 9″” e traçou o caminho da palavra “bugre” até que ela fosse aplicada aos povos nativos brasileiros.

“Comecei a estudar a etimologia da palavra e percebi que vem de um conceito do infiel moral da Idade Média”, diz o pesquisador. “O bugre é aquele que é infiel moral e é também, quando o colonizador chega aqui, para ele, um infiel do mundo do trabalho.”

Guisard fez um longo trabalho de campo na cidade de Cáceres, no Mato Grosso, onde há uma considerável população indígena. Lá, mesmo com toda a transformação que a palavra sofrera desde os bogomilos, percebeu que ela continuava sendo usada com o cunho agressivo de sempre.

Existe, por isso, um incômodo entre os povos indígenas com o apelido do time campineiro. Ainda que a alcunha não tenha sido criada para atacar, ela machuca.
“O clube carrega o peso de ter no seu nome uma representatividade tão magnífica, que também tenho o orgulho de carregar. Acredito que o clube tenha a possibilidade de repensar algumas construções pejorativas e construir de fato um orgulho que não seja à custa de lágrimas de muitos”, aposta Graciela Guarani.

O Guarani foi procurado pela reportagem para se posicionar sobre o tema e preferiu não enviar uma resposta.

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