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O amor de mulheres que adotaram crianças com deficiências, transtornos e HIV

Sentimento materno supera barreiras do preconceito e da desinformação ao adotar um filho; apenas dez a cada 100 pretendentes brasileiros aceitam meninos e meninas com limitações físicas e cognitivas


Por Estadão Conteúdo Publicado 12/05/2019
Mães que adotaram crianças com deficiências compartilham experiências e rebatem preconceitos. Foto: Ingrid Mendonça

“O ser humano tem o hábito de amar o bonito e o perfeito, mas minha filha me ensinou a amar a alma. Não consigo nem ver a deficiência dela”, diz Ingrid Mendonça, mãe adotiva da pequena Helena, de dois anos. A garota tem microcefalia e paralisia cerebral, com apenas 7% do cérebro, e foi deixada em uma maternidade de São Paulo pela genitora, sob a alegação de que não tinha condições de criá-la.

Devido às complicações, ela ficou três meses no hospital até Ingrid aparecer em sua vida, após sair do Paraná para conhecê-la “Olhar para ela abandonada em um leito, sem nenhuma família, segurar a sua mãozinha e dizer ‘desculpa a demora, a mamãe chegou’ foi o momento mais marcante”, recorda.

Helena faz parte de uma minoria entre as crianças e adolescentes com deficiências na fila de adoção. De acordo com os dados do Cadastro Nacional da Adoção (CNA), dentre os 46 mil casais interessados em adotar, apenas 4,6 mil (10%) aceitam crianças com essas características. Além disso, só 2,4 mil (5%) do total acolheriam crianças com o vírus HIV. Os adolescentes sequer são contabilizados, porque as chances são remotas em todo o País.

Não se pode afirmar que isso se deve só ao preconceito, pois nem todo pretendente está preparado para dar cuidados diferenciados de saúde aos filhos. Entretanto, Ingrid Mendonça e outras mulheres apontam que já se depararam com comentários preconceituosos sobre a adoção especial. “Já ouvi coisas como: ‘Você adotou mesmo sabendo que ela era assim?’, ‘Adotou porque ela é aposentada?’, ‘Ela vai andar e falar, né?’, e aí por diante”, relata. “Sempre respondo com um sorriso, da melhor maneira possível, pois sei que as pessoas não acreditam que alguém possa fazer o que fiz e que elas mesmo não fariam”, completa.

Sujeitas a pensamentos assim, muitas crianças passam anos sem conseguir uma família, enquanto outras são fadadas a ficarem nos abrigos até completarem a maioridade e, posteriormente, viverem em instituições de caridade sob a guarda do Estado.

Diante dessa situação, o E+ conversou, para este dia das mães, com Ingrid e mais seis mulheres que adotaram crianças com deficiências, HIV e transtornos cognitivos. Cada uma mostra como o amor materno é capaz de superar as barreiras do medo, do preconceito e da negligência.

‘Se ela não conseguir andar no futuro, eu serei suas pernas.. ‘

“…E se ela não conseguir comer sozinha, eu serei as mãos dela e vou alimentá-la para o resto da vida”. É com essa declaração que Janaína Machado, de 32 anos, expressa o amor que sente pela filha Maria Vitória, de quatro anos. A menina nasceu com paralisia cerebral e síndrome alcoólica fetal, fruto de um nascimento prematuro que a deixou internada por oito meses na maternidade. “Ela tem várias limitações, mas nenhuma que supere o sorriso dela”, afirma.

A mulher decidiu adotar após viver o luto de um filho biológico que perdeu com apenas três dias de vida. “Decidi que não era necessário gerar no ventre para ser mãe. Tem tantas crianças querendo ser filho, então por que não a adoção?”, recorda. “Não achava justo escolher a criança como se eu escolhesse uma marca de mercado. Estava disposta a amar a criança do jeito que ela viesse”, completa.

Além de Maria Vitória, Janaína é mãe biológica de dois adolescentes e não enxerga muitas diferenças na criação deles. “Toda criança dá trabalho, cada uma de um jeito. Em vez de eu levar a Maria para uma aula de natação, eu levo para a fisioterapia. Em vez de acompanhá-la no balé ou futebol, levo-a para a fonoaudióloga. Ela nunca foi um peso a mais. Nossa rotina é como a de qualquer outra família”, desmistifica. “Então não precisam ter dó da gente, encarar como algo triste. Basta ter empatia.”

Em uma noite, quando a pequena não tinha nem um mês, Janaína recorda que deitou ao lado dela e de seu outro filho na cama, chorou e agradeceu. “Nossa vida é muito feliz, porque dizemos sim ao amor”, conclui.

‘O HIV não me faria mudar de ideia ou amá-lo menos’

Foi no ano de 2016 que Karla Oliveira ouviu o seu primeiro “mãe” em cinco minutos de conversa com Vinícius**, hoje com sete anos de idade, em um abrigo de São Paulo. O menino é portador do HIV e teve a guarda retirada de seus genitores com poucos meses de vida, quando sofreu tuberculose e foi vítima de maus tratos.

Apesar de sadio e sem qualquer deficiência que costuma afastar os casais, a mãe ressalta que ele ficou quatro anos esperando por uma família, devido ao preconceito que existe sobre o vírus. O garoto faz exames de sangue e passa em consultas com um médico infectologista regularmente, tomando coquetel de 12 em 12 horas. Entretanto, ainda existem pessoas cujo medo persiste.

“Já ouvi gente dizendo que eu deveria entender caso outros pais não deixassem suas crianças brincarem com a minha, porque eles estão preocupados com a vida dos filhos”, lamenta. “Não sei se isso seria preconceito ou falta de informação, pois quem está indetectável [como o Vinícius] tem chances mínimas de transmissão”, explica.

Mesmo assim, os tabus não intimidam Karla e o menino. “Ele está sempre de bem com a vida e conversando com todos. Isso me torna uma pessoa cada dia mais alegre e aberta”, afirma. “O HIV não me faria mudar de ideia ou amá-lo menos”.

‘Disseram que iríamos acabar com a nossa vida’

Elisa foi vítima de uma enchente há quatro anos, quando ainda tinha poucos meses de vida, em Porto Velho, capital de Rondônia. Ela caiu no curso d’água, teve lesões na cabeça e perda de oxigênio devido ao afogamento. Os danos a deixaram com paralisia cerebral e as sequelas foram determinante para os próximos capítulos da sua história.

Elisa foi encaminhada para um abrigo da cidade, onde, depois de cinco anos da tragédia, conheceu Débora e Renato Albuquerque, um casal de São Paulo que se apaixonou pelas fotos da garota e resolveu adotá-la. “Com a chegada dela, eu aprendi que o ser humano se adapta a tudo na vida. No início, alimentar uma criança por sonda e não por boca foi assustador, mas hoje vejo que é a coisa mais simples do mundo”, afirma a mulher, que também é mãe do Pedro, de quatro anos.

Depois de todos os traumas enfrentados por Elisa, Débora recorda da primeira vez que a menina sorriu para ela e fez carinho em seu rosto. “Foi nesse momento que senti que ela me aceitou como mãe”, recorda.

Apesar de a adoção ter trazido felicidade e superado o passado de dificuldades da garota, a família ouviu comentários maldosos antes dela chegar. “Já fomos chamados de loucos, disseram que iríamos acabar com a nossa vida e nos criticaram: ‘Depois ela vai crescer e o que vocês vão fazer?'”, relata Débora. “[Contradizendo as críticas], crescemos como pessoas. Aprendemos a olhar para as mínimas coisas e agradecer”, diz.

‘Ser mãe é preencher o vazio que eu sempre senti’

Michelle Lopes sonhou por muito tempo em ser mãe e ficou cinco anos na fila de adoção com sua companheira, Valdirene Lima, até que Nicole aparecesse em suas vidas aos cinco meses de idade. A menina nasceu com problemas neurológicos, prematura, sofreu parada cardiorrespiratória e ficou cega ainda muito pequena.

Mesmo assim, as dificuldades não a impediram de encontrar o carinho que precisava no colo das duas mulheres. “Nunca pensei em ter uma criança especial, mas foi amor à primeira vista”, conta.

Tempos depois, as duas adotaram Raíssa, que tem paralisia cerebral. “Estávamos abertas a qualquer tipo de criança. Sabíamos que poderíamos encontrar as com deficiência, HIV ou vítima de violência. Estávamos de coração aberto”, afirma.

O amor, no entanto, nunca barrou comentários preconceituosos. Os próprios médicos já questionaram a decisão das duas. “Muitos perguntavam nas consultas: ‘Nossa, mas vocês sabiam que ela iria dar trabalho para o resto da vida?'”, recorda.

Michelle e Valdirene estão novamente na fila de adoção para terem o terceiro filho e aconselham: “Toda mãe, biológica ou não, tem que ser capaz de adotar o filho, de aceitá-lo do jeito que ele é”.

‘Agradeço pela minha infertilidade’

É com essa frase que Marcília Arantes explica a emoção de o “destino” ter colocado seus filhos Arthur Vinícius, de dez anos, e Luis Otávio, de nove, em sua vida e na do marido Marcus Silva. “Meu medo não era o de adotar e ter alguma surpresa, mas o de não ser mãe”, conta.

A mulher recorda que o amor pelos dois se aflorou quando ela e o esposo foram conhecê-los. No almoço, o mais velho perguntou: “Você sabia que é meu pai?”. Dias depois, o casal já estava com a guarda dos meninos, e Marcília mantém consigo todas as lembranças que a maternidade lhe deu desde então, como as cartinhas de dias das mães.

Apesar de sadios, Marcília conta que Arthur e Luis nasceram de uma usuária de drogas, o que poderia causar sequelas no futuro. O tempo passou e o mais novo foi diagnosticado com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) quando começou a ter dificuldade na escola, o que suscitou comentários inconvenientes por parte dos adultos.

“Muitos questionam o fato de ele ser bagunceiro sem sequer saber o que há por trás. Acham que é só bagunça, sendo que na verdade é a ansiedade e inquietação que o TDAH causa”, relata.

Entretanto, essa característica é só um detalhe perto da relação que Marcília tem com os dois: “Sou realizada e feliz. Nossos filhos são o arco-íris que brilha dentro de casa; o céu de estrelas que nos ilumina a todo instante.”

‘Ela começou a viver quando nasceu para nós’

“O sentimento mais sublime que existe”. É assim que Rose Lima define sua relação com a filha Rafaela. A garota foi adotada com sete anos e, nos primeiros dez dias de convivência, caiu em lágrimas quando sua irmã Bianca – também filha de Rose – a deu banho. “A Rafa encostou a cabecinha no ombro dela e chorou. Acho que foi o primeiro carinho e cuidado que ela recebeu na vida. Fico emocionada até hoje”, recorda.

A menina tem sequela de rubéola, deficiência intelectual, TDAH e autismo. De acordo com a mãe, ela é hiperativa em grau extremo e algumas pessoas não entendem o comportamento dela. “Os preconceituosos assumidos são mais fáceis de lidar, mas os piores são os hipócritas”, critica.

“Todos acham lindo os filhos especiais dos famosos, mas na realidade ninguém facilita nada para a gente. Quero o direito de matriculá-la na escola sem ter que brigar e o de ter as atitudes dela respeitadas, sem precisar explicar”, completa.

Rose cria sozinha as duas filhas e diz que não se achava capaz de adotar uma criança com deficiência. No entanto, conta que a adoção deu um novo significado para o destino da garota: “A Rafaela começou a viver quando nasceu para nós.”

*Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais

**Nome fictício para preservar a identidade do menino, a pedidos da mãe

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