Biden governa por canetada e põe em risco legislações ambiciosas
Segundo dados da Casa Branca e do Federal Register, o Diário Oficial americano, Biden baixou 29 ordens executivas desde que assumiu
Ninguém pode dizer que ele não avisou. O presidente Joe Biden prometeu, mais de uma vez durante a campanha do ano passado, que iria baixar várias ordens executivas –decretos que só dependem de uma canetada do mandatário– para reverter uma série de políticas da gestão de Donald Trump. Mesmo assim, não se imaginava que o democrata iria tão longe.
Segundo dados da Casa Branca e do Federal Register, o Diário Oficial americano, Biden baixou 29 ordens executivas desde que assumiu. No mesmo período, Trump assinou 9 ordens executivas e o Barack Obama (2009-2017), outras 9. Desde Franklin Delano Roosevelt (1933-1945), que governou em meio à Grande Depressão e à Segunda Guerra Mundial, um presidente não se apoiava tanto em medidas unilaterais para governar.
A atitude contrasta com o mantra de união e bipartidarismo com que Biden se elegeu. Mas, na opinião de analistas, esse nem é o maior problema. O perigo para um governo que abusa das ordens executivas é suas ações acabarem sendo efêmeras, revertidas assim que outra pessoa assumir a Presidência.
Trump foi um dos campeões em ações executivas, muito por causa de sua inabilidade de negociar com o Congresso para aprovar leis. O republicano assinou 215 ordens executivas em seus quatro anos de governo, diante de 146 de Obama em seu primeiro mandato, e 128 no segundo.
Como consequência, grande parte do que os republicanos consideravam o legado de Trump foi revertido agora por Biden: a saída dos EUA do Acordo do Clima de Paris e da Organização Mundial da Saúde, a proibição de soldados transgêneros nas Forças Armadas, o veto à entrada nos EUA de pessoas de alguns países de maioria muçulmana e a liberação de recursos para a construção do muro na fronteira com o México.
É muito mais fácil rescindir ordens executivas do que leis aprovadas pelo Congresso. Duas conquistas legislativas importantes de Trump, o corte de impostos e a reforma da Justiça criminal, serão mais duradouras do que suas ordens executivas, por exemplo.
Esses dois projetos foram aprovados com apoio bipartidário após meses de negociação e só podem ser anulados com outro esforço amplo no Congresso. No caso de Obama, o chamado Obamacare –a reforma do sistema de saúde americano, que foi aprovada no Legislativo– foi bombardeado durante todo a gestão Trump, mas sobreviveu.
A primeira ordem executiva de Trump quando assumiu, em 2017, foi justamente para acabar com o Obamacare. Mas um decreto presidencial não pode invalidar uma legislação–e nem as repetidas tentativas de legisladores republicanos conseguiram reverter o programa. Já o acordo nuclear com o Irã, uma ação executiva de Obama, foi anulado por Trump com uma canetada.
“Da mesma maneira que Trump assumiu com a missão de desfazer tudo que Obama tinha feito, Biden está desfazendo as peripécias de Trump”, diz Geraldo Zahran, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). “Mas, além disso, parte das ordens executivas estão relacionadas à pandemia da Covid, que é uma situação legítima para o uso dessas medidas, comparável ao contexto de Franklin Roosevelt.”
Somando todas as medidas executivas dos primeiros 20 dias de governo Biden, os números são ainda mais impressionantes: foram 29 ordens executivas, 13 memorandos e 8 proclamações.
Todas permitem ao presidente governar só som a sua caneta: são determinações que vêm direto do Salão Oval da Casa Branca, diferentes de leis, que precisam de votos suficientes para serem aprovadas na Câmara e no Senado.
Mas as ordens executivas têm mais poder: são determinações para autoridades ou entidades governamentais, vinculantes e têm força de lei –desde que não violem a Constituição. Os memorandos são parecidos, mas não precisam citar a autoridade legal do presidente, nem ter seu impacto orçamentário avaliado. Já as proclamações têm um papel mais cerimonial, funcionam mais como uma orientação.
Normalmente, os presidentes só apelam para as ordens executivas quando estão em situação francamente desfavorável no Congresso. Obama, por exemplo, adotou a abordagem “uma caneta e um telefone” nos dois últimos anos de seu segundo mandato, quando as maiorias da Câmara e do Senado eram republicanas e obstruíam toda e qualquer proposta legislativa defendida pelo presidente. Já Biden começou logo de cara, mesmo com uma (apertada) maioria das duas Casas.
Na Câmara dos Representantes, o partido de Biden tem atualmente 221 cadeiras, contra 211 nas mão da oposição. No Senado, a disputa é ainda mais acirrada: são 50 democratas (incluindo dois independentes que votam com a sigla) e 50 republicanos. Mas como o voto de desempate cabe à vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, na prática o governo tem maioria na Casa.
Além de as ordens executivas serem menos sólidas, elas têm outras desvantagens. O Congresso não pode reverter ordens executivas, mas pode aprovar uma legislação para minar essas ações ao vetar a liberação de recursos para sua implementação.
Há também os tribunais. As ordens executivas de Trump barrando muçulmanos foram derrubadas inúmeras vezes pela Justiça, e acabaram aceitas em uma versão muito desidratada. Uma das ações de Biden, uma moratória de cem dias nas deportações, já foi bloqueada por um juiz federal. Um grande efeito colateral das ações executivas é azedar as relações com os legisladores do partido que está fora do poder.
“Pode ser que o ritmo dessas ordens executivas comece a gerar animosidade entre os republicanos”, diz Carlos Gustavo Poggio, professor de relações internacionais na Faap. Isso pode se transformar em um empecilho na hora de aprovar medidas que não aceitam o atalho das ordens executivas, como a Lei de Estímulo contra a Covid.
Biden tenta aprovar no Congresso uma pacote de ajuda contra a pandemia orçado em US$ 1,9 trilhão (R$ 10,2 trilhões). O projeto tem pontos que enfrentam oposição dos republicanos, como o aumento do salário mínimo dos funcionários do governo e assistência para alimentação.
A menos que consiga usar um mecanismo que permite aprovar a legislação no Senado com maioria simples, Biden precisará de, pelo menos, um pouco de boa vontade dos republicanos.
“Biden está apostando que poderá implementar uma agenda ambiciosa sem muita negociação com os republicanos, pelo menos por enquanto. É um risco”, diz Poggio.
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