Investigação sobre a morte de marido abala imagem de Flordelis
Pastor Anderson do Carmo, 42, foi assassinado após eles voltarem para a casa que dividiam com 35 dos filhos
A história de Flordelis dos Santos de Souza, 58, já foi contada muitas vezes em jornais. Parecia mesmo um belo conto de fadas.
Ela passou por programas como os de Ana Maria Braga e Marília Gabriela, sempre tida como uma mãe exemplo que, com quatro filhos biológicos, adotou mais 51. Recebeu em 1994, de uma só vez, 37 crianças de rua após uma chacina na Central do Brasil.
Vinha da favela. Virou pastora e, depois, cantora gospel de sucesso. Até um filme sobre sua trajetória ganhou, superpovoado de estrelas globais que interpretavam pessoas salvas por ela, de Bruna Marquezine a Cauã Reymond.
Em 2018, candidatou-se pelo PSD e teve mais votos que qualquer mulher na disputa por uma vaga na Câmara dos Deputados. Lá, virou referência na pauta da adoção.
Desde 17 de junho, contudo, a deputada acumula 11 faltas não justificadas no Congresso, algo inédito para ela. Todo mundo sabe o motivo: Flordelis perdeu o marido na madrugada anterior.
O pastor Anderson do Carmo, 42, foi assassinado após eles voltarem para a casa que dividiam com 35 dos filhos. “Saímos para namorar, curtimos bastante. Uma noite, assim, muito boa”, ela contou ao Fantástico, quando a imprensa já migrara sua história de vida para as páginas policiais.
Anderson tombou por volta das 4h. O laudo do Instituto Médico Legal constatou 30 perfurações em seu corpo, nove delas na região de coxas e virilha.
O desenrolar de tudo ainda é confuso. Um filho biológico de Flordelis (mas não dele), Flávio dos Santos Rodrigues, confessou à polícia ter atirado no padrasto, mas sua defesa diz que o depoimento não é válido porque não foi acompanhado. Lucas Cezar, 18, filho adotivo, teria comprado a arma do crime. Os dois estão presos.
Outro filho, contudo, teria dito à polícia que suspeita da participação da mãe e de irmãs no assassinato. Elas teriam até, segundo ele, colocado remédio da comida de Anderson tempos antes, para agravar sua saúde.
Toda essa narrativa, ainda a ser depurada pelas investigações, desbaratou a imagem de casal modelo que Flordelis e Anderson clamavam para si.
Seus caminhos se cruzaram a dois dias do Natal de 1991. Ele, um jovem de 14 anos que já trabalhava na igreja e fazia um curso de administração, ouviu falar de uma mulher que morava na mesma favela que ele, Jacarezinho (zona norte carioca). Flordelis ia toda sexta-feira a bailes funk para pregar o Evangelho. Encontrou-a na igreja onde ela cantava.
Juntos, começaram um trabalho de evangelização que, com o tempo, virou o Ministério Flordelis, com duas igrejas em Niterói e outra em São Gonçalo. Seis filhos são pastores. Casaram-se quando ele tinha 18, e ela, 33.
A parceria se estendeu na criação dos filhos, que têm entre 8 e 44 anos. Mais da metade mora numa casa amarela no alto de uma rua sem saída, num bairro de classe média de Niterói (região metropolitana do Rio). Pelos buracos do portão, dá para ver a garagem onde Anderson foi baleado.
O clima é de interior. Quando “o pessoal da casa” vai comprar doces em uma das únicas vendinhas próximas, leva sempre de baciada, diz uma comerciante. Flordelis uma vez pegou ali 25 picolés.
Estão no terreno há cerca de sete anos, quando empresários sensibilizados com a situação familiar pagavam financiamento -Carlos Werneck, dono do Hotel Marina, ajudava Flordelis há anos. Com a ascensão financeira na igreja e na política, o casal passou a arcar com as parcelas do que faltava pagar.
Para abrigar a filharada e alguns netos, são três casas cheias de “puxadinhos”. A sala, com um grande sofá marrom e uma TV simples, é o local onde a mãe costuma convocar reuniões para discutir erros e acertos.
“Falo: carinha, tem que consertar isso aí. Querida, passamos do ponto”, afirmou a deputada em entrevista a jornalistas. Ela diz ter uma família normal, com brigas como em qualquer outra, sem motivos para um desfecho extremo.
A Marília Gabriela, em 2016, a deputada disse que sim, claro, os filhos têm desavenças. “Às vezes por apelidos. E tem aquela coisa do mico, um comete o mico, outro fica zoando.”
A jornalista lhe pergunta: “Chegou a desistir honestamente de alguma criança?” Nunca, responde. “Não sei se é por causa da minha fé, acredito muito que as coisas podem acontecer, sou muito positiva. Eles precisam de uma chance.”
Há na residência um cômodo de oração (“o canto onde eu mais fico”). No quarto do casal, ou “da muvuca”, rolavam sessões de filme. Acima da cama, um quadro de Romero Britto. Há também um sofazinho e uma cama de solteiro, “porque de vez em quando alguém dorme aqui”, Flordelis contou em vídeo de 2017.
Sua assessoria afirma que o casal educou os filhos “com o conceito de individualidade, mas de cooperação”. Todos têm uma atividade doméstica, e os gestores do dinheiro, uma das especulações para a motivação do crime, eram Anderson e um dos filhos.
Na filmagem, Flordelis faz um tour para seus seguidores num almoço de domingo. “Vem comigo, gente!”, diz em tom de apresentadora infantil, enquanto pula brinquedos, passa por uma lavanderia abarrotada de roupas e apresenta cada filho, nora, genro e neto que aparece pelo caminho.
Os 11 quartos, muitos deles ocupados por beliches, são divididos, em geral, por idade. No que Flávio dormia, a polícia encontrou uma pistola.
Ele não aparece na gravação, mas o outro suspeito é pego de surpresa no corredor. “Lucas gosta de trabalhar no som da igreja. Ama, faz com amor, é algo que ele gosta demais”, diz a mãe. O garoto sorri, de boné azul e mochila nas costas.
Na cozinha, um dos filhos traz uma pilha de bifes empanados, outra mostra o pudim que fez. São 35 kg de arroz e 14 kg de feijão por semana.
“Primeiro as crianças”, a mãe diz. E Anderson ironiza: “Quem são as crianças, amor?” e todos gritam em coro: “Eu, eu, eu”. Ante a balbúrdia, o pai fala à câmera: “Consegui salvar meu prato. Não sei o que está acontecendo, nossa família não é assim. Somos um povo educado”.
A família não tem dado mais entrevistas por orientação dos advogados. O receio veio após reportagens os pintarem como uma seita, e outras em que especialistas arriscam analisar sua relação.
Na semana passada, uma filha e uma funcionária atenderam a reportagem no portão, mas disseram que não podiam dar qualquer informação. Lá dentro, o cachorro continuava latindo, e as crianças, brincando.
Flordelis, que há 15 anos não teve votos para ser vereadora em São Gonçalo, tentou se eleger de novo em 2018, desta vez para ser deputada federal. Seus 197 mil votos lhe garantiram o quinto melhor desempenho no pleito (2,5 vezes maior que o do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, do MDB) e a performance campeã entre as mulheres.
Em Brasília, priorizou um dos temas que lhe é mais caro, a adoção. Em maio, propôs uma moção de repúdio à passarela montada com crianças e adolescentes num shopping de Cuiabá, um desfile para atrair pais adotivos.
Também sugeriu a criação de dias nacionais para a adoção, a luta contra o feminicídio e a valorização da família. Em março, descreveu à Folha de S.Paulo um “ambiente muito machista” no Congresso. “Já fui barrada até por outra mulher. A gente sente um pouquinho, mas, vamos pensar, se eu tivesse do outro lado, faria a mesma coisa, porque meu chefe deve estar me observando.”
Naquele mês, entrou no páreo para presidir a bancada evangélica, mas, junto a outros quatro candidatos, abdicou da candidatura em prol de Silas Câmara (PRB-AM). À reportagem Silas afirma que o bloco aguarda “a verdade dos fatos” emergir das investigações.
Oficialmente, vários colegas de fé e Parlamento expressaram suas condolências pela morte do marido. Nos bastidores há futrica e uma certa dose de maldade, como um meme que circulou num grupo de WhatsApp da bancada: um anúncio fake anunciando uma palestra de Flordelis sobre “como colocar seu marido nos braços de Jesus”.
A reportagem conversou com algumas pessoas ligadas à frente evangélica, que desferiram teses sobre o assassinato. Abuso infantil, rixa com igrejas vizinhas e até crime político -o marido reorganizava o partido de Flordelis, PSD, no estado, e falava-se na hipótese de ela concorrer à Prefeitura de São Gonçalo (RJ) em 2020.
Tudo, por ora, disse que disse. Consenso mesmo, só que Anderson comandava o mandato da esposa, de forma que era comum pensar nele como parlamentar, e que os dois pareciam felizes juntos.
O único filho biológico deles, Daniel, divulgou no domingo (8), no Facebook, a venda de uma camiseta com o rosto do pai, por R$ 24. A legenda: “O legado continua”.
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