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Governo Bolsonaro gasta mais com kit robótica a aliados do que com obras de creche

A falta de vagas em creches e pré-escolas é dos maiores gargalos educacionais do país, sendo que a educação infantil foi alçada como prioridade no discurso da atual gestão


Por Folhapress Publicado 24/04/2022
Governo Bolsonaro gasta mais com kit robótica a aliados do que com obras de creche
Foto: Roberto Gardinalli

O governo Jair Bolsonaro (PL) liberou mais dinheiro para municípios que contrataram kits de robótica com uma empresa de aliados do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), do que investiu na construção de creches em todo o país neste ano. As transferências para a compra de kits de robótica em 2022 foram 18% maior do que os investimentos em obras de educação infantil. A falta de vagas em creches e pré-escolas é dos maiores gargalos educacionais do país -a educação infantil foi alçada como prioridade no discurso da atual gestão.

Até 21 de abril, o FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) transferiu R$ 35 milhões para a compra de kits. Os recursos foram destinados a 11 prefeituras -8 de Alagoas e 3 de Pernambuco. Todas têm contratos para compra do material com a Megalic, empresa de Maceió cujos donos têm ligação com Lira. Por outro lado, as transferências para obras de educação infantil somaram neste ano R$ 30 milhões. Esse valor foi mais pulverizado do que o de robótica: 206 prefeituras dividiram esse montante.

Foram consideradas todas as operações realizadas até agora no âmbito do PAR (Plano de Ações Articuladas) e do Proinfância, os dois programas do FNDE de transferências voluntárias. Dentro do PAR é que estão os recursos direcionados para robótica. O país ainda precisa incluir em creches 2,2 milhões de crianças de até 3 anos para alcançar a meta de ter ao menos metade dessa faixa etária matriculada. Questionados, MEC e FNDE não responderam.

A Folha mostrou em 6 de abril que sete cidades alagoanas receberam neste ano R$ 26 milhões de dinheiro federal para robótica, apesar de sofrerem com deficiências de infraestrutura como falta de salas de aula, internet, computadores e até água encanada. Outros dois municípios pernambucanos também haviam recebido recursos para o mesmo fim, além de terem contrato com a mesma empresa.

Os recursos foram liberados a jato. Em quatro casos os empenhos ocorreram em dezembro e, nos outros, entre agosto e outubro. O dinheiro foi depositado para os municípios entre fevereiro e março. Após a publicação da reportagem, o FNDE continuou com as transferências direcionadas para prefeituras comprarem kits de robótica. Em 12 de abril, outras duas foram beneficiadas: o município de João Alfredo (PE) recebeu R$ 2,1 milhões e já pagou a empresa. A Prefeitura de Joaquim Gomes (AL) recebeu R$ 234 mil.

A empresa Megalic funciona numa casa em Maceió e tem como sócio Edmundo Catunda, pai do vereador de Maceió João Catunda. A relação entre eles e Lira é pública. O vereador, a empresa e o presidente da Câmara negam irregularidades. Arthur Lira é responsável por controlar em Brasília a distribuição de parte das bilionárias emendas de relator do Orçamento, fonte dos recursos dos kits de robótica. A secretária de Educação da cidade de Flexeiras (AL), Maria José Gomes, confirmou à Folha que Lira atuou para liberar os recursos federais para a compra dos equipamentos.

A prefeitura foi beneficiada com R$ 1,8 milhão do FNDE. Segundo a gestora disse à reportagem, o município também contou com a consultoria de uma assessora parlamentar ligada ao vereador João Catunda nas liberações de recursos federais. A Megalic não fabrica os equipamentos, é apenas intermediária. Nos contratos com as prefeituras, ela tem vendido os robôs por R$ 14 mil –valor 420% superior ao pago por parte deles.

A cidade que recebeu o maior volume de recursos no ano do FNDE foi União dos Palmares (AL), beneficiada com R$ 7,4 milhões para compra de robôs da Megalic. Já para obras de educação infantil, o maior valor pago no ano foi de R$ 1 milhão, transferido para Vacaria (RS). Os dados se referem somente a transferências voluntárias no PAR e Proinfância. Evidências internacionais apontam que a educação na primeira infância provoca efeito positivo no desenvolvimento das crianças, na redução de desigualdades e na vida adulta.

Sob Bolsonaro, a proporção de crianças matriculadas em creches recuou em 2020, mesmo antes da pandemia. Só 17% dos municípios brasileiros conseguem ter vagas em creches para ao menos metade das crianças da faixa etária. Enquanto libera sem critério e com velocidade incomum dinheiro para robótica a aliados, o governo Bolsonaro trava verba de 1.369 prefeituras. São cidades com recursos atrasados do FNDE, formalmente aptas a receber o dinheiro, para as quais o governo simplesmente não faz a transferências.

Assim, o FNDE emperra R$ 434 milhões a prefeituras de todo o país e deixa paradas construções de creches, escolas, salas de aulas e quadras. Em Umuarama (PR), por exemplo, 900 crianças de até 3 anos aguardam na fila de creche por falta de vaga enquanto uma obra continua inconclusa desde 2015. Foram executados 50% da obra mas o FNDE só transferiu o equivalente a 31% do convênio.
A prefeitura, que afirma ter mantido a construção com recursos do município, está apta a receber R$ 535 mil, segundo informações do governo federal. O FNDE trava o repasse sem explicação.

“O município tem cobrado a liberação dos recursos pendentes do FNDE, porém não há previsão de repasse por parte do governo federal”, disse a prefeitura em nota. A rede municipal de Umuarama tem 9.423 matrículas, sendo 1.359 em creche. A priorização de dinheiro público para robótica pode se intensificar nos próximos meses. Isso porque o FNDE já efetivou empenhos de R$ 146 milhões para a compra de kits de robótica, identificou a área técnica do TCU (Tribunal de Contas da União). O recurso é destinado a 29 municípios de Alagoas e 10 de Pernambuco.

O empenho é a primeira fase da execução orçamentária e reserva o dinheiro para determinado fim. Os R$ 146 milhões referem-se à compra de 831 Soluções de Robótica Educacional. Cada solução envolve um conjunto de robôs, materiais de apoio e cursos de capacitação de professores. A Secex (Secretaria-Geral de Controle Externo), que fornece subsídios técnicos para o julgamento de processos no TCU, recomenda que o governo Bolsonaro suspenda todos repasses de dinheiro federal para a compra de kits de robótica. O processo ainda não foi apreciado pelo tribunal.

A relação de empenhos levantada pelo TCU indica priorização a prefeituras de Alagoas, estado de Lira. Os empenhos somam R$ 109,4 milhões para 29 municípios alagoanos -em 22 casos os recursos são de emendas de relator do Orçamento. As dez cidades de Pernambuco, por sua vez, ficam com R$ 36,7 milhões.

Os empenhos identificados pelo TCU incluem as cidades que já receberam os recursos e que foram citadas pela Folha. São elas: União dos Palmares, Canapi, Santana do Mundaú, Branquinha, Barra de Santo Antônio, Maravilha, Flexeiras e Joaquim Gomes, de Alagoas, Bom Jardim, Carnaubeira da Penha e João Alfredo, de Pernambuco. Para o TCU, “não resta esclarecido e evidenciado quais critérios foram observados pelo FNDE no processo de aprovação dos pedidos e celebração dos Termos de Compromisso para a aquisição das aludidas Soluções de Robótica Educacional”.

Ligado ao MEC (Ministério da Educação), o FNDE é controlado por indicações de partidos do centrão. O presidente, Marcelo Lopes da Ponte, era assessor de Ciro Nogueira (PP-PI), atual ministro da Casa Civil do governo Bolsonaro, do mesmo partido de Lira e um dos líderes do bloco de apoio à atual gestão federal.

Em 28 de março o ministro Milton Ribeiro foi exonerado após vir à tona a existência de um balcão de negócios na pasta, com participação de pastores evangélicos sem vínculo oficial com o poder público e acusações de cobrança de propina até em barra de ouro. Ele perdeu o cargo sete dias após a Folha revelar áudio em que ele dizia que privilegiava um dos pastores lobistas a mando de Bolsonaro.

Com Milton Ribeiro no comando do MEC e políticos do centrão no controle das transferências do órgão, o fundo virou uma espécie de balcão político. Dados oficiais da pasta mostram uma explosão de aprovações de obras, ausência de critérios técnicos, burla no sistema e priorização de pagamentos a aliados.

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