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‘Pandemia evidencia solidão de idosos e sensação de que são um peso’, diz antropóloga

"Não é uma alienação, é uma proteção existencial. É impossível sobreviver emocionalmente a essas imagens tão violentas. Aprendi com meus velhinhos a me proteger", diz a antropóloga Mirian Goldenberg


Por Folhapress Publicado 27/03/2020
Foto: Sabine Van Erp/Pixabay

Desde março de 2015, a antropóloga e colunista do jornal Folha de S.Paulo Mirian Goldenberg convive com homens e mulheres de mais de 90 anos.

A rotina, parte de suas pesquisas sobre felicidade, faz brincar que seu RG marca “93 anos de idade”. “Minha vida tem sido a vida deles, eu me tornei nativa, como dia a antropologia tradicional”.

Desde o início da pandemia de coronavírus, que causa mais quadros graves e mortes em idosos, Goldenberg passa de oito a dez horas diárias ao telefone ouvindo o que eles têm a dizer.

Mergulhada por completo na vida em isolamento destas pessoas e de suas famílias – compostas muitas vezes de filhos acima dos 60 anos-, a antropóloga se emociona ao comentar o cenário. Diz que não assiste mais à TV e se informa apenas por jornais.

“Não é uma alienação, é uma proteção existencial. É impossível sobreviver emocionalmente a essas imagens tão violentas. Aprendi com meus velhinhos a me proteger”.
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Pergunta – Temos ouvido discursos que atribuem pouca relevância ao coronavírus por se tratar de uma doença com taxa de letalidade mais alta entre os idosos. O que isso diz de nós como sociedade?
Mirian Goldenberg – A situação fez com que se dramatizasse uma realidade já vivida pelos mais velhos, que é a de que eles são inúteis e um peso para a sociedade. Que só atrapalham, prejudicam, precisam ser controlados. É uma visão de que, quando você envelhece, pode ser eliminado.
Mesmo antes da epidemia muitos sentiam que viviam uma espécie de morte simbólica. O valor que se dá a essas pessoas mais velhas é quase nulo, socialmente e dentro de casa.

Se a mortalidade fosse maior entre crianças e adultos jovens, estaríamos nos comportando diferente?
MG – Sim. E isso estamos vendo em muitos discursos horrorosos de pessoas importantes, que dizem que só velhinhos vão morrer. Isso é cruel para todo mundo. É muito difícil mudar uma mentalidade em poucas semanas ou meses.
Esses valores que associam a juventude, a produtividade, a beleza e o amor somente às pessoas que não são velhas estão enraizados na nossa cultura. No Brasil esse tipo de discurso é muito forte. A única forma de as pessoas mudarem é pensar que ou já são velhas hoje, ou serão amanhã. Estão falando delas também, de como serão tratadas quando ficarem velhas. O que está em jogo agora são valores a respeito do significado da vida. Eles não são velhinhos descartáveis.

De que maneira o isolamento forçado afeta os idosos?
MG
– Eles são muito ativos e saíam todos os dias para o supermercado, banco, farmácia, fazer exercícios, encontrar amigos. Isso era sinônimo de liberdade, utilidade e vida com sentido. Eles têm total consciência de que ficar em casa é importante, só que foi de uma hora para outra. Eles estão sofrendo, deprimidos, com medo da doença e de como vai ser viver em casa.

Alguns deles têm tido dificuldade de abraçar o isolamento completo, e mantêm seus hábitos na rua. ​Psicólogos explicam que não é teimosia, mas sim a busca por um local onde se sintam acolhidos. Como você vê esse comportamento?
MG
– Essas brincadeiras que dizem que “os velhos estão saindo de casa” não são verdade, porque a grande maioria está dentro de casa, tentando fazer algo útil para a família e para as pessoas que ama. Eles não estão arriscando a vida deles e a dos outros, é injusto chamá-los de teimosos.
Tem que entender que é difícil se adaptar a uma nova realidade, sabendo que estão muito próximos da morte – e isso não pelo coronavírus, mas porque eles não têm muito tempo de vida no geral. Parece que eles têm culpa de ser velhos. Culpa de ser um risco, de estar ameaçando a sociedade.

Você tem se comunicado com seus pesquisados dessa faixa etária. Quais são os principais sentimentos?
MG
– Esse isolamento obrigatório é quase uma morte simbólica para eles. Um deles me ligou para dizer que viu os caixões na Itália e que, lá, os filhos não podem se despedir dos pais. “Mirian, como vai ser?”, me perguntou, desesperado. Chorei. Falei para ele sair da TV. E que, se eles não podem fazer nada pelos que estão morrendo na Itália ou aqui, já estão fazendo muito por mim e pelas pessoas que eles amam.

Alguns filhos têm brigado com os pais para que não saiam na rua. É preciso chegar a esse ponto?
MG
– Não adianta tratar nossos velhos, que são lúcidos, ativos e conscientes, como crianças que não sabem o que está acontecendo. Não adianta dar ordens, porque eles já sabem o que é certo ou errado. Só não sabem como sobreviver nesse momento. Acho que a primeira coisa é escutar, em vez de querer que eles obedeçam como se fossem crianças.

Estejam em quarentena na mesma casa, ou a distância em casas diferentes, como podemos cuidar dos nossos idosos nesse momento?
MG
– Faça de tudo para que a casa deixe de ser uma prisão e vire um espaço onde podem fazer coisas boas. Mostre a eles filmes interessantes. Eles também precisam saber que podem telefonar para os filhos, esse contato é uma das coisas mais importantes. Leia para eles, compartilhe coisas bonitas e interessantes que você leu, e eles vão fazer o mesmo com você.
Meu projeto agora é escrever todas as minhas colunas [na Folha de S.Paulo] sobre isso. Pretendo contar o que estou aprendendo nessa relação com eles. Nunca estivemos tão juntos, por incrível que pareça.

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