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Receio de retomar a vida após a flexibilização pode estar associado à síndrome da cabana

Como a quarentena obrigou a maioria das pessoas a passarem meses trancados dentro de casa, o termo passou a estar em voga depois que a flexibilização possibilitou saídas mais frequentes, desde que tomados os devidos cuidados


Por Folhapress Publicado 22/11/2020
Foto: Roberto Gardinalli

Como muitas pessoas neste período de pandemia, a escrevente Kedma França de Souza, 45, está trabalhando de casa. A moradora da Vila Pompeia (zona oeste de São Paulo), que segue um isolamento bastante rigoroso desde março, diz que não sabe o que faria se fosse obrigada a ter que voltar ao trabalho presencial. “Não gosto nem de pensar nessa hipótese por enquanto”, conta em entrevista ao F5. “Só de pensar, já vou ficando acelerada, pensando em como teria que resolver isso.”

Preocupada por ser do grupo de risco (ela tem diabetes), Kedma conta que, quando a pandemia começou, ela fez uma compra grande de supermercado. Testou sair de casa com um saco plástico na cabeça, mas percebeu que estava se sentindo sufocada e acabou optando por ir com uma toalha enrolada ao redor da cabeça. “Comecei a ficar paranoica”, brinca. Depois desse episódio, ela preferiu comprar por aplicativos de entrega.

A escrevente diz que já chegou a escutar da própria família que está se excedendo nos cuidados para não se infectar com a Covid-19. Tanto que as próprias irmãs passaram a esconder dela quando vão se encontrar. “Faço um discurso a cada saída que elas fazem”, explica. “Mas esse exagero que eu tenho no cuidado não é irreal, nessa de flexibilizar as pessoas estão se infectando mais. Estou preparada para ficar mais 8 a 12 meses em casa.”

E, mesmo que uma vacina fosse aprovada, ela diz que ainda não conseguiria sair tranquilamente na rua. “Eu continuaria tomando as mesmas cautelas”, afirma. “Até ter certeza de que o perigo já passou mesmo. Mas sou pessimista, acredito que mais vírus virão.”

Esse receio de retomar a vida “lá fora” pode estar associado a algo que os especialistas conhecem como síndrome da cabana. A psicoterapeuta Sabrina Amaral, 42, diz que o principal sintoma é a angústia e o medo acima do normal de sair de casa, que se manifesta em sinais como taquicardia, sudorese e frio na barriga. “Para essas pessoas, sair de casa seria como se estivessem colocando a mão na boca de um jacaré”, compara.

Ela explica que essa condição começou a ser estudada no ano de 1900 e foi observada inicialmente nas regiões de inverno mais severo nos Estados Unidos, em que as pessoas tinham que passar longos períodos isolados em suas cabanas. Quando o frio passava e a neve derretia, algumas pessoas apresentavam esses sintomas, como se houvesse uma ameaça iminente de perigo.

Como a quarentena obrigou a maioria das pessoas a passarem meses trancados dentro de casa, o termo passou a estar em voga depois que a flexibilização possibilitou saídas mais frequentes, desde que tomados os devidos cuidados. Mas Amaral tranquiliza: “A despeito de ter esse nome que assusta um pouco, ela não é uma doença mental severa e nem mesmo está no catálogo de doenças mentais”.

Amaral explica: “O nosso cérebro fica condicionado, ele associa que estar em segurança é estar dentro de casa”. “Quando você precisa retomar as saídas, aparecem os sinais”, diz. Também podem estar associados à síndrome da cabana sintomas como letargia, falta de motivação, sono excessivo e alguns comportamentos aditivos, como comer ou beber demais.

O principal problema, no entanto, é que ela pode ser a porta de entrada para outros problemas mais graves, como agorafobia (fobia de espaços abertos ou públicos), síndrome do pânico ou transtorno de ansiedade generalizada (TAG).
A psicoterapeuta diz ser possível treinar o cérebro para reverter esse quadro com uma técnica da terapia cognitivo-comportamental chamada de dessensibilização sistemática, que nada mais é que se aproximar gradualmente daquilo que provoca o medo.

Ela reitera que não é da noite para o dia que todos os problemas da pessoa irão se resolver. “É similar a quando você quebra uma perna e tem que fazer fisioterapia para voltar a ter os movimentos”, equipara. “Tem que fazer uma espécie de fisioterapia emocional para ganhar flexibilidade de novo nas emoções.”

Amaral também diz que, apesar de algumas pessoas pensarem que não estão com o problema, vale consultar um profissional se você escuta a todo momento dos outros que seu medo é exagerado. “É como a pessoa que trabalha numa fábrica onde faz muito barulho, pensa que escuta normal e só percebe que não é bem assim quando reclamam que está com o volume da TV nas alturas”, brinca.
“Muitas pessoas, especialmente em aspectos emocionais, entram em negação”, lembra. “Mas se os familiares estão preocupados, se existem comportamentos recorrentes e observáveis, vale à pena procurar um especialista. O máximo que vai acontecer é você ter um olhar neutro sobre o que você está sentindo.”

VÁLVULA DE ESCAPE
Para Kedma, citada no começo do texto, uma coisa que tem contribuído é a companhia da cadelinha Canjica. “Adotei ela em julho e tem me ajudado bastante”, admite. Por causa dela, a escrevente tem feito pequenas saídas diárias para passear com o animalzinho na rua (sempre escolhendo horários em que vai ter pouco ou nenhum contato com outras pessoas).

Já para a analista de recursos humanos Daniela Domenici Ferreira, 36, as filhas, Maria Fernanda, de 1 ano e 11 meses, e Ana Carolina, de 7 meses, têm funcionado como essa válvula de escape. A moradora do Jardim Pedreira (zona sul de São Paulo) só abre exceção para sair de casa quando tem que levá-las para as consultas com o pediatra.

“Inclusive mudei para um pediatra que é um senhor de idade e está tomando todas as medidas cabíveis para se proteger”, conta. “Ele atende menos pessoas e faz intervalos maiores entre os pacientes para não encontrarmos com mais ninguém no consultório.”

Desde que o início da pandemia, Ferreira conta que as saídas de casa foram todas relacionadas a saúde. Ela teve de ser internada em março, com 37 semanas de gestação, por suspeita de ter contraído o coronavírus. Depois que voltou para casa, só saiu para ter a segunda filha.

De uma família de descendentes de italianos, ela diz que sente falta dos almoços de sábado com todos reunidos na casa da avó, de 83 anos. “Tem gente da minha família que nunca viu a minha filha mais nova”, lamenta. “Fiz uma conta no Instagram para eles poderem acompanhar o crescimento dela. É triste.”

Ela também não sai de casa para fazer as compras. “Se não fosse o meu marido, eu ia passar fome”, brinca. “Eu ensinei ele a escolher as frutas. Quando ficava na dúvida, ele fazia chamada de vídeo do mercado.” E quando chega em casa, ela higieniza tudo e manda ele ir direto tomar banho.

Mesmo com todos os cuidados, ela, o marido e as duas filhas contraíram o vírus depois do nascimento da bebê, depois que o marido teve contato com familiares que participaram de um encontro. “Até hoje, não sinto gosto e cheiro direito”, reclama. Além disso, o sogro faleceu por complicações com a Covid-19.

“Tenho receio de pegar algo, passar para quem eu amo e essa pessoa morrer”, compartilha. “Eu notei que a minha ansiedade está muito grande, porque voltei a roer as unhas. Eu tinha parado havia 15 anos, e agora voltei.”

Desempregada, ela diz que não aceitaria no momento nenhum emprego que fosse presencial. “Antes de uma vacina, eu não vou”, afirma. “Ficaria muito mais tranquila se houvesse.”

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