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Estudo aponta presença de variante do coronavírus já em novembro em Manaus

Diferentemente da forma ancestral do vírus, em que cada indivíduo infectado pode transmitir o vírus para uma outra pessoa (na média), uma pessoa carregando a variante P.1 em seu organismo pode infectar de 1,7 a 2,4 pessoas


Por Folhapress Publicado 16/04/2021
Funcionário do SOS Funeral remove corpo de uma criança de seis meses, na manhã desta quinta-feira (14), que morreu de complicações respiratórias, em Manaus (AM), no bairro Santa Etelvina, zona norte da capital. Devido ao caos na saúde, o SOS Funeral levou quase 24h para ir buscar o corpo da criança. (Foto: Sandro Pereira/Folhapress)

A variante do coronavírus primeiramente identificada em Manaus, chamada de P.1, surgiu já em novembro de 2020, cerca de um mês antes do aumento expressivo de novos casos e óbitos de Srag (Síndrome Respiratória Aguda Grave) naquela cidade, que se deu a partir de dezembro. Além disso, a variante é cerca de 1,7 a 2,4 vezes mais transmissível e evoluiu rapidamente na cidade, onde conseguiu encontrar um ambiente promissor em uma população com alta prevalência de anticorpos contra a forma original do coronavírus e que não eram eficazes na proteção contra a nova cepa.

Esses são os principais achados de um artigo publicado na última quarta-feira (14) na revista Science. A pesquisa é fruto de uma parceria Brasil-Reino Unido, o projeto Cadde (Centro de Genômica e Epidemiologia de Arbovírus), coordenado, por aqui, pela pesquisadora Ester Sabino e, no Imperial College de Londres, por Nuno Faria, também pesquisador.

A caracterização da P.1 e seu potencial mais transmissível já haviam sido reportados previamente, mas o estudo traz nova luz quanto à origem da nova variante do Sars-CoV-2: em meados de novembro de 2020, o novo ramo divergiu da linhagem ancestral, a B.1.1.28, e passou a evoluir em uma taxa veloz, adquirindo 17 mutações únicas, sendo dez delas na proteína S do Spike (a espícula usada pelo coronavírus para entrar nas células).

Como essa evolução se deu muito rapidamente, a alta de casos de Srag já em dezembro de 2020 era um sinal de que havia algo estranho, uma vez que um estudo publicado naquele mesmo mês havia apontado uma taxa de infecção na cidade de Manaus de mais de três quartos da população (76%).

Com o sequenciamento de 184 amostras coletadas entre novembro e dezembro na capital amazonense, os pesquisadores conseguiram construir uma linha do tempo evolutiva com base em uma metodologia chamada relógio molecular: o ponto zero da mutação pode ser definido a partir do conhecimento da taxa evolutiva da linhagem, isto é, quantas vezes aquela mesma variante sofreu mutações em um determinado período.

Assim, a data, ainda que não seja possível cravar um dia exato (os pesquisadores afirmam ser por volta do dia 15 de novembro), coincide com o achado de outros estudos similares, como o da Fiocruz Amazônia, liderado pelo pesquisador Felipe Naveca, que encontrou amostras da variante datadas de dezembro de 2020 em uma análise realizada no início de janeiro.

Para analisar o potencial epidemiológico da nova variante, isto é, sua capacidade de causar uma infecção mais potente e maior transmissão, os pesquisadores fizeram modelagens matemáticas com a variante P.1 e uma forma “não P.1”.

Diferentemente da forma ancestral do vírus, em que cada indivíduo infectado pode transmitir o vírus para uma outra pessoa (na média), uma pessoa carregando a variante P.1 em seu organismo pode infectar de 1,7 a 2,4 pessoas. “Ou seja, é o dobro, quase o triplo. Em termos de saúde pública, estamos essencialmente frente a uma variante que se espalha mais rapidamente e, possivelmente, não temos ainda certeza, causa uma infecção por um período mais longo”, explica Faria.

Ainda, de acordo com os resultados, a P.1 pode também causar reinfecção em duas pessoas e meia a cada cinco (cenário menos conservador) ou uma em cada cinco pessoas (cenário mais conservador), indicando que de 80% a 54% da população que já teve Covid tem proteção contra a nova forma. “Em outras palavras, 21% a 46% dos casos da segunda onda em Manaus podem ter sido de reinfecções com a variante P.1. Mas esses dados precisam ainda de confirmação”, diz.

Uma das hipóteses levantadas para tentar explicar a evolução rápida da linhagem é sua capacidade de fugir dos anticorpos neutralizantes produzidos contra a forma original do vírus, o que condiz com os modelos matemáticos de reinfecção descritos acima. O pesquisador frisa, no entanto, que o intervalo de confiança desses dados é grande, e é mais provável que o cenário real esteja próximo dos 21% de reinfecção.

Para Ester Sabino, a infecção em um paciente com o sistema imune comprometido pode ter dado mais tempo para o vírus evoluir e adquirir essa “resistência”. O estudo, no entanto, não conseguiu, com base nos dados de Manaus, responder a pergunta se a variante é mais letal e causa quadro mais agravado da doença, porque o colapso do sistema de saúde, com muitas pessoas internadas ao mesmo tempo e a escassez de oxigênio, podem ter agravado a mortalidade.

De qualquer forma, o aumento no número de óbitos após a entrada da P.1 foi também observado em outras cidades, como Araraquara, que em fevereiro de 2021 viveu o pior momento da pandemia, com maior número de óbitos nos meses janeiro e fevereiro do que em todo 2020. Àquela altura, a P.1 já havia se espalhado por pelo menos seis estados brasileiros, inclusive o interior de São Paulo. Dados de voos de e para Manaus obtidos da Anac (Agência Nacional de Aviação) mostram como houve um grande contingente de passageiros até o dia 24 de fevereiro entre Manaus e São Paulo (mais de 30 mil).

Faria afirma que o fechamento das fronteiras e o bloqueio dos voos interestaduais teriam atrasado, mas não impedido completamente o avanço da P.1. “As barreiras geográficas são muito friáveis. A B.1.1.7 [variante britânica], por exemplo, foi detectada no início de dezembro e, cerca de um mês e meio depois, já estava em mais de cem países.”

Para ele, mais importante do que o controle sanitário é a vigilância genômica, que é o monitoramento das novas formas do vírus a partir da análise do material genético com mutações, e é fundamental que uma estrutura laboratorial, com vários pontos de coleta e análise de amostras e o compartilhamento das informações se faça presente não apenas em um contexto de emergência sanitária, mas também como um esforço para a identificação de vírus emergentes, como é o caso do Cadde.

“O que não funciona é começar a montar a estrutura e interromper o financiamento. Precisamos de um incentivo constante à vigilância genômica, porque novos vírus vão sempre surgir. A questão não é se, mas quando”, diz.

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