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Como a Disney moldou a cultura e agora faz cem anos sob ameaça de perder Mickey

Hoje avaliada em US$ 155 bilhões, a Disney tem uma trajetória que serve como crônica do próprio sonho americano


Por Folhapress Publicado 15/10/2023
Disney
Mickey, o garoto propaganda da Disney, junto dos principais personagens da marca – Foto: Reprodução/Instagram

Tudo começou com um rato. Cem anos depois, o rato já não importa tanto assim. Apesar de sintetizar a história de sua criação com a frase romântica e pueril, que nem é tão autêntica assim, já que seu principal personagem seria criado cinco anos depois, a The Walt Disney Company chega ao seu centenário como muito mais do que a casa de Mickey Mouse. Muito mais até do que uma produtora de animação.

Uma das marcas mais reconhecidas mundialmente, responsável por moldar gerações e criar um imaginário coletivo por meio de seus filmes, a Disney virou sinônimo de soft power dos Estados Unidos ao expandir seus negócios para esportes, música, teatro, livros, games, parques temáticos, cruzeiros e toda sorte de produto.

Hoje avaliada em US$ 155 bilhões, a Disney tem uma trajetória que serve como crônica do próprio sonho americano. Foi em meio aos loucos anos 1920 e aos delírios de grandeza que Hollywood desenhava para si, afinal, que um Walt Disney de 21 anos sem dinheiro no bolso deixou para trás o pequeno e falido estúdio que havia fundado em Kansas rumo à Califórnia.

Ao lado do irmão, Roy O. Disney, e do ilustrador Ub Iwerks, fundou em 16 de outubro de 1923 a Disney Brothers Studio, como a companhia foi originalmente chamada, prosperando com o coelho Oswald, mais tarde perdido numa negociata de direitos autorais, e com curtas que misturavam animação e live-action. Mas o sucesso e a independência financeira vieram mesmo com Mickey, em 1928, que no curta “O Vapor Willie”, ou “Steamboat Willie”, estrelou a primeira animação com som sincronizado da história. Com um personagem carismático e tecnologia nas mãos, os negócios prosperaram.

Não deixa de ser irônico, portanto, que a Disney chegue agora ao centenário sob a ameaça de perder a exclusividade de Mickey Mouse, que deve entrar em domínio público no ano que vem. Não espere ver, porém, o ratinho em qualquer canto.

A empresa tem tomado precauções e se associado de forma mais umbilical ao personagem para embaralhar o que é só mais uma propriedade intelectual e o que é a sua própria marca –esta tem restrições mais rigorosas de uso. Percebeu que, nos últimos anos, todas as animações do estúdio acompanham uma vinheta que rememora “O Vapor Willie”, como um selo?

Este, no entanto, é o menor dos problemas da Disney. A empresa completa um século com o barquinho Willie navegando em águas turbulentas. Não bastassem as greves que chacoalharam a produção audiovisual americana nos últimos meses e puseram sob escrutínio os salários exuberantes de seu CEO, seu valor de mercado tem caído.

Suas ações, na festa de comemoração, valem menos do que nos primeiros e incertos meses de pandemia. Não são números exatamente ruins, mas estão longe de permitir serenidade no trato dos negócios, que passaram por um pico de crescimento a partir de janeiro de 2014, última vez em que o valor de mercado esteve tão baixo.

E a direção da Disney já percebeu isso. Tirou da aposentadoria, em novembro, o antigo CEO Bob Iger, após a desastrosa gestão de Bob Chapek e dos números vacilantes do streaming Disney+. A esperança é a de que Iger consiga reverter o cenário desfavorável, como já havia feito quando assumiu o cargo pela primeira vez, em 2005.

Os 15 anos em que ele esteve à frente da companhia foram marcados pela diversificação dos negócios e por aquisições importantes. Partiu de sua gestão a iniciativa de comprar a Pixar, a Marvel Entertainment e a Lucasfilm, ampliando a biblioteca de personagens valiosos. Sem falar no arremate da 21st Century Fox, seu canto do cisne, que deu à Disney um controle sem precedentes do calendário de estreias.

Iger tem dois anos, pelo novo contrato, para pôr a casa em ordem e escolher um sucessor. Entre as medidas já tomadas estão o corte de US$ 5,5 bilhões em custos e a demissão de 7.000 funcionários. Decisões duras, semelhantes às que várias outras empresas do setor vêm tomando, embora mascaradas pelo clima de festa das bodas centenárias.

Não que essa seja a primeira crise vivida pelo estúdio. Em cem anos de trajetória, afinal, há espaço de sobra para maus momentos. Nos anos 1940, a Segunda Guerra fez minguar o interesse pelas animações simpáticas que eram o bem mais precioso da empresa. Na virada da década de 1960 para 1970, a morte de Walt Disney impôs ao Walt Disney Animation Studios um bloqueio criativo, e nenhum filme parecia agradar ao público. A concorrência aproveitou para florescer, deixando a divisão de desenhos da empresa à beira do fechamento até que esta fosse salva pelo sucesso de “A Pequena Sereia”, em 1989.

E nos anos 2000, quando a fórmula dos musicais teatrais se esgotou, outra crise veio. Nenhuma, no entanto, teve o escopo da enfrentada agora, que vai muito além dos dados de bilheteria e, pior, parece ser fruto não do destino, mas das próprias estratégias traçadas em anos recentes –com uma ajudinha da pandemia e da insegurança do streaming.

Sair dela vai ser mais difícil, sem dúvida. E os planos anunciados até agora parecem ir na contramão do que tornou a empresa um titã do capitalismo americano –inovação. Basta olhar para “Branca de Neve e os Sete Anões”, primeiro longa americano animado, recordista de bilheteria ao ser lançado, em 1937, e responsável por fundar a animação enquanto gênero cinematográfico.

Aos poucos, a fórmula foi sendo revista, adaptada e aprimorada. Das animações em 2D como “Pinóquio” e “Peter Pan” à xerografia de “101 Dálmatas”; das extravagâncias musicais de “Hércules” e “O Rei Leão” à pegada pop de “Tarzan”; do abraço na computadorização de “Dinossauro” à modernização da receita com “Frozen”. Inovação não só entre os desenhos. Se “Mary Poppins” inovou ao pôr Julie Andrews, em carne e osso, para dançar com pinguins ilustrados, “Avatar”, agora uma franquia da Disney, inundou os cinemas com câmeras à prova d’água.

Enquanto “Star Wars” era apresentado para uma nova geração, o Universo Cinematográfico Marvel moldou a forma de fazer e lançar filmes na última década –mesmo que ambas as franquias agora apresentem sinais de desgaste. A solução encontrada para a crise parece ser justamente hiper-saturar, apesar de as experiências com Jedi e super-heróis indicarem que essa é uma aposta com prazo de validade. Em meio aos dados financeiros frustrantes dos últimos meses, a Disney pinçou de seu acervo bens valiosos e anunciou “Toy Story 5”, “Frozen 3”, “Zootopia 2”, “Divertida Mente 2” e live-actions de “Moana” e “Os Incríveis”.

Há uma crise de identidade pairando no ar. Não só nos estúdios da Disney, mas em toda Hollywood, bagunçada em meio à reorganização entre cinema, televisão e streaming. Enquanto sequências, refilmagens e derivados não ficam prontos, apostas mais singelas podem apontar para um novo caminho.

Em janeiro, a Disney lança “Wish”, sua 62ª animação em longa-metragem. O filme recupera técnicas empregadas nos primórdios da companhia, como os desenhos em 2D feitos à mão, e as moderniza. Também retoma as fanfarras musicais que marcaram a chamada “Renascença Disney” nos anos 1990. E, nesta segunda, a festa vai começar com um rato. Mickey vai guiar o espectador pela história da companhia no curta “Era Uma Vez um Estúdio”, que levará para os corredores da sede da Disney Animation todos os personagens aos quais seus lápis, pincéis e computadores deram vida.

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