Em novo álbum, Daniela Mercury faz tributo a São Paulo e ao axé
Foram cerca de dois anos e oito singles antes de o produto final chegar ao público, com suas 15 faixas e um remix bônus
“Sabe quando o sol chega e ilumina tudo? Falar de coisas difíceis já se fala todos os dias, eu venho para dar aquele banho de ‘xêro'”, diz Daniela Mercury por telefone, às vésperas do lançamento de Perfume seu 20.º disco de estúdio, que está nas plataformas digitais desde sexta-feira (10) e celebra simultaneamente os 35 anos da axé music e os 70 do trio elétrico.
O disco, ela avisa, é uma maneira de tentar buscar a resiliência para a felicidade em meio a um clima de obscurantismo “na educação, cultura, arte e no próprio ser humano”. “Perfume traz uma variedade de olhares. Sou uma artista que lida diretamente com a população e estou aqui para trazer uma mensagem de esperança, para reforçar o que é positivo em nós. Esse é um álbum de força”, esclarece entre uma gargalhada e outra.
Foram cerca de dois anos e oito singles antes de o produto final chegar ao público, com suas 15 faixas e um remix bônus. E, apesar de Daniela confessar que acha “gostoso” o sentimento de ouvir um disco do início ao fim, ela entende que a era do streaming demanda conteúdo constante para atrair uma geração que encara as músicas com mais efemeridade.
Antes, ela conta, a estratégia era gravar um disco a cada dois anos e, “com muito trabalho e esforço”, lançar cinco singles. “Assim, as pessoas têm mais tempo para ouvir e lidar com a música. A gente sempre falava sobre o lado b do álbum, que não era lançado. Mas hoje, que lado b é esse?”, questiona. Mais que longevidade, Daniela explica que a estratégia adotada por ela desde Canibália (2009) é a saída que encontrou em uma indústria mais preocupada com “mercado” do que com “cena”.
“Fazer uma música mais conceitual em um mundo de muito entretenimento, onde se fala mais de mercado do que de cenário musical, não é nada fácil. Tento fazer esse trabalho autoral desde o começo da minha vida, mesmo tendo sido catapultada para o mainstream”, observa, lembrando de uma época antes do show antológico que fez no vão do Masp em 1992, de ter construído seu nome na Região Sudeste e de assinar seu primeiro contrato com o Selo Eldorado.
O contrato com a gravadora do Grupo Estado, conta, foi o único que Daniela encontrou à época para se lançar com o Companhia Clic, grupo de axé que ela liderou no fim da década de 1980. “Eu fazia uma música que não era provável se tornar o que se tornou”, relembra. “Era um gênero ligado aos blocos afro que não chamava atenção, além do contraste com o que tocava no rádio.”
Antes da aclamação nacional que conquistou em 1990, ela lembra que foi também a Eldorado a primeira rádio da região a tocar suas músicas. “Eu me senti extremamente respeitada. Era uma estação de jazz, mas gostaram de Swing da Cor. Foi ela que colocou a faixa na programação. Era uma coisa improvável. Swing da Cor entrou para a história do jazz brasileiro.”
Perfume traz essa mistura do axé que lançou Daniela ao mundo, mesclando o lado carnavalesco sem esquecer as canções “de meia-estação”, como ela se refere a faixas como Duas Leoas, com a esposa Malu Verçosa, e Longínquo Longe, com o filho Gabriel Póvoas, ou o discurso social que carrega até hoje. “Sou uma artista muito eclética, de MPB, axé, que gosta de cantar coisas diferentes, então sempre fico dividida.”
Ao longo das 15 faixas, houve espaço até para uma homenagem à folia paulistana, que ela mesma tem dominado nos últimos anos com a saída do já tradicional bloco Pipoca da Rainha, sempre no domingo de pós-carnaval pela Consolação. “A avenida pulsa como o coração paulista/ A felicidade dança e Sampa é tropicalista no meu axé”, ela canta em Triatro, que completa a trilogia de amor por São Paulo iniciada em Vinil Virtual (2015) e foi inspirada no tropicalismo de Rita Lee.
“São Paulo é tudo ao mesmo tempo, com suas particularidades, bloquinhos e tribos urbanas. A importância do carnaval é o povo paulista abrir a janela e ir para as ruas, ocupar com sua alegria, mostrando para o mundo quem mora aí”, explica, orgulhosa de contribuir com a construção dessa história. “Quem plantou essa sementinha fomos nós baianos, e falo por amor não por bairrismo.”
Além do tributo, Daniela resgata também a veia ativista que mantém desde o início da carreira, indo desde referências diretas ao governo de Jair Bolsonaro, com Rainha da Balbúrdia e Proibido o Carnaval, à exaltação da cultura afro em Pantera Negra Deusa e Exalou. “Meu caminho de luta é a luz e a clareza. Sempre foi difícil, por isso temos de falar com mais convicção sobre o que é positivo. O axé é basicamente essa reiteração do amor por nós”, observa.
Há outras surpresas no retrovisor futurista de Perfume, que aponta para o início da carreira de Daniela e expande o leque de gêneros e parcerias do álbum. Carlinhos Brown, com quem ela colabora desde os anos da Banda Eva, aparece em Andarilho Encantado. Chico Buarque volta ao seu repertório na versão mezzo brasileira mezzo italiana de A Banda, que se transforma em La Banda com a dupla I Koko. E Chico César, autor por trás do sucesso de À Primeira Vista, assina a composição da romântica Pétala por Pétala.
Carro-chefe do disco Feijão com Arroz (1996), a música entrou para a trilha da novela Rei do Gado, tornando-se a primeira música de Daniela na programação da TV Globo e emplacando seis meses entre as mais tocadas. “Chico ainda não era conhecido no Brasil. Minha irmã, Vânia, me mostrou o disco Aos Vivos e fiquei louca. Comecei a produzir imediatamente, mandei para a Globo conhecer e a versão demo acabou indo para a novela. Depois tive de imitar na gravação final”, ri ao lembrar.
Entre protestos e blocos de carnaval, Daniela traz em seu 20.º disco a mistura carnavalesca unindo o samba reggae aos maiores compositores brasileiros e, dessa vez, até John Lennon, em releitura alto-astral e batucada de Imagine. “Não tem certo ou errado em arte, tem o que cada um quer fazer”, defende. “Eu sou uma artista que fez MPB em cima do trio, até meus fãs identificam muito isso. ‘Lá vem a Daniela com as letras cheias de mensagens’. Mas não podemos esquecer de esperançar ou considerar isso superficialidade. A arte humaniza e nos lembra quem somos.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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