Livro mostra curiosidades de Dias Gomes e Janete Clair e bastidores da censura em ‘Roque Santeiro’
Passagem está no livro "Herói Mutilado - Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura", da jornalista Laura Mattos
“Não é plausível, mas ia ser lindo. Mandem o realismo à merda. Ela deve ter o caso e ficar grávida. O público ia adorar.” A frase foi dita por Janete Clair (1925-1983) para o marido, Dias Gomes (1922-1999), e o poeta Ferreira Gullar (1930-2016), que discutiam a trama de uma personagem da novela “Sinal de Alerta” (Globo), de 1978, que Gomes escrevia com a colaboração informal do amigo.
Para eles, intelectuais comunistas que queriam retratar o que consideravam ser a realidade brasileira, a traição da mulher casada, honestíssima, com um colega de fábrica, não seria plausível, mas era fundamental para a trama avançar.
Diante do dilema, Janete, já conhecida por ser autora de folhetins de sucesso na rádio e na TV, resolveu dar o seu pitaco. A passagem está no livro “Herói Mutilado – Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura“, da jornalista Laura Mattos, colunista da Folha de S.Paulo.
Em tempos em que a censura volta a avançar no país, a obra ganha relevância ao mostrar como funcionava a máquina dos militares para a repressão cultural e como ela continuou atuante mesmo depois da redemocratização do país, em 1985. De quebra, apresenta trechos delicioso, curiosos e alguns trágicos de dois dos principais dramaturgos do Brasil: Dias Gomes e Janete Clair.
O foco do livro é “Roque Santeiro” (Globo, 1985), novela que está entre as melhores já produzidas no Brasil. A história gira em torno do mito do herói. No caso, um falso herói. É Roque (José Wilker), que teria morrido ao defender a fictícia cidade de Asa Branca de um bandido poderoso. Ele vira santo e todo o vilarejo passa a tirar proveito disso.
Mas 17 anos depois, Roque volta para o desespero dos poderosos de plantão, que lucram muito com a sua morte, entre eles Sinhozinho Malta, vivido por Lima Duarte, e Viúva Porcina, interpretada por Regina Duarte -atriz que acaba de assumir o cargo de Secretaria Especial da Cultura. A trama é uma clara crítica de Gomes à exploração da fé e à ganância dos políticos.
Inicialmente, o enredo foi escrito para o teatro. Chamava “O Berço do Herói” e o protagonista era o cabo Jorge. Dado como morto, ele vira lenda por sua bravura contra os nazistas na Segunda Guerra Mundial. O soldado volta anos depois, quando se descobre que, na verdade, ele desertara e passara os últimos anos em bordéis da Europa.
A peça foi censurada pela ditadura. Anos depois, em 1975, Gomes fez algumas mudanças na história e a transformou na novela “Roque Santeiro”. A ideia era driblar os militares, mas não deu certo. Toda a trama foi censurada (fato inédito na ditadura) pouco antes de sua exibição, com 36 capítulos já finalizados. A situação levou a Globo a fazer um editorial contra a decisão, que foi lido no Jornal Nacional.
Mas não teve jeito. Só dez anos depois, “Roque Santeiro” foi ao ar como marco da volta da liberdade de expressão. Não foi exatamente assim, como mostra Laura Mattos no livro. Todos os capítulos ainda eram analisados pela censura e muitos vetos foram feitos.
Desta feita, porém, os cortes eram mais concentrados em aspectos da “moral e dos bons costumes”, como beijos que caracterizavam traição e até algumas palavras, caso de desodorante íntimo. “E uma curiosa distinção foi feita pelas censoras no capítulo 97: vetaram a frase ‘Joga bosta no ventilador’, mas deixaram passar o termo ‘cocozinho’, ‘porque foi dito de forma menos incisiva e desprovida de agressividade'”, escreve Mattos no livro.
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