Menino torturado em mercado de São Paulo é analfabeto, usuário de crack e filho de mãe alcoólatra
Os suspeitos de torturar a vítima são dois seguranças que pareciam ter tudo planejado para concretizar o espancamento dentro das dependências do supermercado
A barra de chocolate mais cara custa R$ 9,99. Mas com bem menos que isso, R$ 2,49, é possível sair do supermercado Ricoy com o doce.
Os preços parecem irrisórios para muita gente, menos para Leandro (nome fictício). Pego num furto de quatro barras de chocolate no Ricoy da Vila Joaniza, na periferia da zona sul da capital paulista, o adolescente foi punido numa sessão de tortura que choca.
Preso num cômodo usado como depósito de mantimentos, o adolescente foi amarrado, amordaçado e despido para ser chicoteado numa manhã do mês de julho. A vítima disse ter ficado 40 minutos em cárcere privado e apanhado o tempo todo.
Os suspeitos de torturar a vítima são dois seguranças que pareciam ter tudo planejado para concretizar o espancamento dentro das dependências do supermercado.
O chicote feito de fios entrelaçados de energia usado por eles cortou as costas da vítima e deixou marcas visíveis já documentadas em exame de corpo de delito.
Leandro saiu do local ameaçado de morte pelos seguranças, motivo pelo qual seu nome e o seu paradeiro não serão divulgados nesta reportagem.
A sessão de tortura filmada em um vídeo de 40 segundos por um dos suspeitos caiu nas redes sociais e serviu de prova para a abertura de inquérito policial nesta segunda-feira (2) –pouco mais de um mês depois da ocorrência.
“Fiquei perplexo. Esse menino foi vítima de um ato execrável e desproporcional pela forma e pela finalidade”, diz o delegado Pedro Luís de Sousa, do 80º DP (Vila Joaniza). “Como um delegado negro e nascido na periferia, não consegui ver o vídeo até o final. Parece que voltamos à época da escravidão”, afirma.
Os seguranças, já identificados, são considerados foragidos porque não se apresentaram à polícia para cumprir a prisão temporária decretada pela Justiça nesta quarta (4). Eles também foram afastados da empresa terceirizada que faz a segurança do Ricoy.
Segundo o delegado que investiga o caso, um dos seguranças, de 49 anos, tem ficha criminal por lesão corporal contra a mulher. O outro, de 37 anos, por apropriação indébita (quando alguém usa ou pega para si um bem que não é seu ou tira algum proveito dele causando prejuízo ao verdadeiro proprietário).
Com mais da metade de seus 17 anos vividos na rua, o menino foi retirado nesta terça (3) da região de Cidade Ademar por um de seus seis irmãos por parte de pai. Ele foi localizado pela família após o caso vir à tona.
Leandro sempre foi de poucas palavras, disse uma cunhada que pediu para não ser identificada. Filho de um pai morto no incêndio de um barraco no início deste ano e de uma mãe alcoólatra, o menino foi parar nas ruas quando ainda era muito pequeno.
Os irmãos tentaram por vezes resgatá-lo dessa condição, mas, segundo outra parente próxima, ele não quis aproximação ou sempre sumia. Ficou ainda mais longe da família quando esteve na Fundação Casa cumprindo medida socioeducativa após invadir uma casa.
Não sabe ler e nem escrever. Sobreviveu nas ruas pedindo esmolas a quem visse pela frente. Numa padaria, ganhava um copo de café e um pão francês logo nas primeiras horas de cada dia.
Para almoçar, conseguia algumas vezes pagar R$ 1 no Bom Prato, restaurante mantido pelo governo de São Paulo, que fornece 1.250 refeições diárias só na região de Cidade Ademar. “Mais de 80% do meu público é esse aqui”, diz a gerente Janaína Nascimento apontando para um morador de rua que dormia em frente ao prédio do programa assistencial.
A venda de material reciclado também ajudava Leandro a comprar o miojo da janta, preparado de forma rudimentar com água aquecida numa resistência que era ligada a um fio de energia elétrica clandestino.
Dona de um ponto de salgados e sucos, Cristina Sales, 45, chama o menino de Pitoco. “Ele só tinha idade, mas parecia uma criança quando abria a boca”, conta.
A comerciante diz que ficou surpresa quando soube que o seu Pitoco teria furtado o supermercado Ricoy. “Ele nunca pegou nada nosso aqui. Quando eles [moradores de rua] têm as necessidades deles, o mais fácil é pedir. Todo mundo se conhece aqui e a lei é: não roube nada de ninguém para não se prejudicar na comunidade”.
O menino descansava em um dos 30 barracos erguidos numa invasão. O local é aberto a todo tipo de sem-teto: de travesti a idosos. Só não entra criança que não nasceu ali.
O lugar acumula montanhas de lixo espalhadas pelo terreno que dividem espaço com cachorros e outras cerca de 50 pessoas. Tudo é muito improvisado. A comida é feita em fogareiros de tijolos com pedaços de madeira catados na rua. Todos fumam pedras de crack.
Leandro também é usuário da droga, segundo o delegado Pedro de Sousa. “Ele é tão ‘nóia’ que não tem nem mais a impressão digital nos dedos”, uma referência ao efeito causado na pele das mãos pelo manuseio da pedra.
“Ele é um dependente químico que tem a necessidade da droga. No dia que ele não tinha dinheiro para comer, passava aqui, pedia um salgado, um cigarro”, lembra Sales.
Dono de uma imobiliária da região, Odilon de Macedo, 72, não vê possibilidade de recuperação de Leandro e seus amigos da invasão. “Essa situação não tem jeito. Eles furtam e roubam para sustentar o vício. Cidade Ademar só desvalorizou com a chegada deles.”
Na invasão, Leandro mantinha vínculo afetivo com o ajudante de pedreiro Álvaro (nome fictício), 42, a quem chamava de pai. “Ele nem conseguiu pegar os carrinhos e as flautas que a gente catou no lixo”, lamenta.
“Não meterás o louco em seu próximo” é um dos mandamentos que Álvaro fez questão de ensinar ao filho postiço. Versículos bíblicos também povoavam as conversas dos dois.
O ajudante de pedreiro diz que conheceu o menino quando ele tinha 8 ou 9 anos de idade. “A gente morava na rua aqui na região. Ele ficava colando em ‘nóis’. Mandei ele ir embora para a casa dele duas vezes e ele sempre voltava. Não teve jeito.”
O menino, segundo Álvaro, ficou estranho nos últimos dias e confessou que estava com medo de morrer. “Só ficava dentro de casa. Foi muito duro saber que isso aconteceu com ele”, afirma.
A lembrança que não quer tirar do filho do coração foi vê-lo feliz indo de metrô até o IML (Instituto Médico Legal) para fazer o exame de corpo de delito nesta semana. “Ele grudou naquele ferro da cadeira e gritava: nunca andei de metrô não, pai.”
Para Álvaro, o adolescente precisa de escola. “Essa rua não é lugar para ele. Esse menino é o nosso presidente de amanhã”, sonha.
Na casa do irmão, Leandro já comeu pratadas de macarrão (prato predileto), ficou feliz em vestir roupa limpa e dormir numa cama só dele, segundo uma parente próxima.
O futuro do garoto está nas mãos do juízo da Vara da Infância e Juventude de Santo Amaro (zona sul), que terá duas opções pela frente: ficar sob os cuidados do irmão ou de um abrigo público até completar 18 anos. Um relatório que está sendo elaborado pelo Conselho Tutelar de Cidade Ademar vai respaldar a decisão judicial.
Para o delegado que investiga o caso, Leandro não deve ser a única vítima de abusos nas lojas do Ricoy. “Supermercados são locais corriqueiros de furtos. Aquele chicote pode ter sido usado mais vezes”, estima Pedro de Sousa. “Se você foi vítima de algum abuso nesse supermercado, por favor, me procure”.
O grupo Ricoy contratou uma assessoria para mediar a crise na imagem do negócio, que possui 50 lojas espalhadas pelos extremos das zonas sul e leste da capital paulista.
A rede classificou de falsa e descabida a afirmação de que usa métodos escusos para tratar de casos de furto em suas lojas. “O grupo jamais estimulou a violência, a discriminação, a coação, o constrangimento ou a força desmedida e desnecessária. Qualquer um desses métodos são inaceitáveis nesta ou em qualquer época”, afirmou em nota.
Pela lei, o caso de Leandro deveria ser resolvido na presença de um representante do Conselho Tutelar porque o suspeito do delito é adolescente. A Polícia Militar precisaria ser acionada no mesmo instante, e o crime registrado num boletim de ocorrência. Mas nada disso foi feito.
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