MC Kevin, o menino que encantou a quebrada, viveu extremos do Brasil
No Instagram, o MC atingiu mais de 10 milhões de seguidores. Seus stories eram acompanhados pela nação funkeira como novela diária, na qual desfilavam tretas com DJs e MCs e zoeiras em série, além de barracos e declarações de amor à namorada Deolane Bezerra, dez anos mais velha
Tão breve quanto apoteótica, a trajetória de Kevin do Nascimento Bueno, 23, o MC Kevin, ilustra os efeitos da extrema desigualdade brasileira e da falta de perspectiva de crianças e jovens pobres, pretos e periféricos, que são maioria no país. Produto da indústria do funk, Kevin viveu dois extremos desse Brasil e queria inspirar outros meninos como ele, sem oportunidade ou apoio, a sonhar alto. A atual rotina frenética de curtição e ostentação de carros, motos e grifes de luxo era o contraponto radical de uma infância e parte da adolescência de escassez profunda.
O MC morreu no último domingo (15), ao cair do quinto andar de um hotel na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, para onde havia viajado com a mulher, a advogada Deolane Bezerra, e uma trupe de colegas e amigos para uma apresentação. A polícia ainda investiga as circunstâncias da morte do funkeiro.
Nascido na Vila Ede, bairro de classe baixa da zona norte da capital paulista, Kevin cresceu numa família em situação de extrema vulnerabilidade, na qual tudo era “pra ontem”.
A mãe solo, Valquíria Nascimento, se desdobrava para sustentar os cinco filhos. Trabalhava diariamente, em geral em período dobrado, faxinando quartos de um hotel. E contava com um projeto social de freiras, ao lado da escola dos filhos, para o contraturno escolar das crianças, raramente ofertado no sistema público. Vizinhos complementavam a atenção a Kevin e a seus irmãos no restante das longas horas em que a mãe estava fora.
Em casa, faltava um pouco de tudo: desde mistura para o arroz com feijão até um par de tênis para os pés do futuro MC. Por vezes, faltou até o teto, e a família foi despejada mais de uma vez das casas que ocupou.
Apesar das dificuldades, Kevin é lembrado por amigos de infância, da escola e do bairro, como um menino alegre e brincalhão, perto de quem não havia tempo feio. “Ele alegrava todo mundo. Tinha um brilho próprio e um coração enorme”, conta Daniel Bony, 37, diretor da escola de samba Unidos da Vila Maria, onde Kevin jogou futebol e participava de ensaios e eventos comunitários.
Foi na quadra da agremiação que o corpo de Kevin foi velado na terça passada (18) na presença da família, amigos e centenas de fãs, que formaram longas filas para se despedir do funkeiro. Muitas coroas de flores e um telão com imagens do artista foram colocados na quadra.
Irrequieto, ia mal na escola, onde tentou se destacar fora da sala de aula criando um grupo de dança dedicado ao hip hop e se arriscando como skatista. A grande paixão, no entanto, sempre foi o futebol. O sonho de ser jogador era, a um só tempo, lazer, passatempo e potencial passaporte para fora da pobreza.
Santista roxo, Kevin era fã incondicional de Neymar Jr., e reproduziu todos os cortes de cabelo do craque que fizeram a cabeça de torcedores jovens como ele. (Em 19 de maio, após a vitória do Paris Saint-Germain na Copa da França, Neymar levou uma camisa em homenagem ao funkeiro: “Descanse em paz, menino”).
“Kevin tentou de tudo para mudar a sua história”, lembra um amigo dos tempos da escola com quem dividia também o gosto pela bola e o busão rumo aos treinos em escolinhas do esporte da Barra Funda, na zona oeste de São Paulo.
“Eu tinha treino e aula no dia que meu irmão foi preso e eu fui trabalhar no lugar dele, vender droga. O que a quebrada proporciona para o menino da favela é isso”, avaliou Kevin em entrevista ao comentarista esportivo Alê Oliveira.
Seria esse o episódio que, justamente, mudaria sua história, das manhãs de peladas na várzea da quebrada para as madrugadas de baile, bebida e baseados. “Foi aí que conheci o funk, os drinks, a balada. E vi que tinha talento pra rimar”, disse.
Descoberto o novo talento, ao mesmo tempo em que os amigos “caíam”, ou seja, eram presos ou assassinados, Kevin encontrou um caminho para fora do crime por meio da música. O primeiro funk que emplacou é de um subgênero conhecido como putaria.
Foi uma parceria com o MC Pedrinho em que causa estranheza o contraste do conteúdo explícito das letras com as vozes de crianças dos MCs adolescentes. Na gravação do primeiro clipe, Kevin precisou pegar emprestado um par de tênis para não aparecer apenas com os chinelos que tinha para calçar.
O primeiro dinheiro ganho com o funk foi gasto no mercado e lotou a despensa da casa da família. Diante de inédita fartura, mãe e filho se abraçaram e choraram juntos diante dos armários cheios da cozinha. Kevin passou a ser o responsável financeiro pela família e também por amigos da quebrada tão pobres quanto ele até tão pouco tempo atrás.
“Kevin passou fome e nunca teve nada. De repente, veio uma mudança enorme de vida. E, como acontece com outros meninos da comunidade que se tornam MC ou jogador de futebol, quando a gente passa a ter [dinheiro], quer comprar mesmo, quer mostrar mesmo”, conta Alexandre da Silva Santana, 38, o Gugu da GR6, que empresariou MC Kevin do primeiro hit até pouco tempo atrás e a quem Kevin chamava de pai.
Ainda aos 16 anos soube que seria pai de uma menina, Soraya, cujo nome depois tatuou no contorno da sobrancelha. A responsabilidade de criar uma mulher pesou nas suas escolhas musicais, e Kevin diz ter decidido abandonar os funks putaria por causa disso.
“Agora eu vou cantar consciente”, relembrou ele em algumas entrevistas, tratando do estilo de funk que discute questões sociais do entorno dos funkeiros. A grana e a fama trouxeram conforto inédito à família. Com cachês girando em torno de R$ 20 mil, as limitações financeiras de outros tempos desapareceram, e Kevin queria viver tudo para já.
Comprava sem pensar no dinheiro, e depois compartilhava roupas e tênis com os amigos. Virava três dias de festa em festa, regadas a uísque e energético e com ampla oferta de sexo, inclusive pago, numa combinação que apelidou de “revoada” e de “boqueta”. Era um reflexo do imediatismo e do sexismo presentes no seu meio.
Trata-se de um perfil replicado em escala industrial pelo funk. Meninos que não tinham nada e, em pouco tempo, passam a dirigir carros de meio milhão de reais, com relógios e correntes de ouro e looks que somam dezenas de milhares de reais. Num contexto em que as pessoas valem o que têm, trata-se de um sinal de que tudo é possível.
Destemido e um tanto inconsequente, Kevin colecionou alguns de seus B.O.s nesse período. Sofreu um acidente ao avançar um farol vermelho, e foi detido por estar embriagado. Também foi pego fumando maconha dentro de um carro com amigos.
Em 2019, numa viagem a Minas Gerais para um festival, foi preso depois que hóspedes do hotel sentiram cheiro de maconha vindo de seu quarto. No camburão policial, fez um vídeo postado em redes sociais ironizando a situação.
“O moleque era como um filho mesmo. Bom coração demais, ele às vezes pensava que todo mundo era amigo dele. E nem todo mundo que está do nosso lado é nosso amigo”, diz o ex-empresário Gugu, para quem era difícil enquadrar Kevin.
“Ele fazia tudo errado, e eu ficava bravo com ele. Mas, quando eu chegava perto dele para uma discussão, ele já me abraçava e me dizia aquele: ‘Tá ligado, né, pai!’. Entrava naquela zoeira e eu não conseguia mais brigar”, conta ele.
Magro desde sempre, nos últimos anos Kevin se dedicou a treinar o corpo e a ganhar músculos e peso na mesma medida em que cresciam as tatuagens que já cobriam braços, barrica e tórax, além de todo o topo da cabeça (coberto por um rosto de Jesus Cristo, oculto pelos cabelos crescidos) e do próprio rosto.
A casa que comprou em um condomínio de alto padrão, decorada com fotos gigantes de Kevin nas paredes, vivia cheia de amigos, quase todos homens, entre churrascos e banhos de piscina, entre o samba, o pagode e, claro, o funk. No estúdio que montou na nova morada, passou a escrever e a produzir músicas como nunca, muitas delas ainda inéditas.
MC Kevin deixou um álbum, “Passado e Presente”, disponibilizado no canal oficial do cantor no YouTube –já tem mais de 1,1 milhão de visualizações–, e investia na sua própria gravadora, a Revolução, após a sair da produtora de funk GR6. A chegada da pandemia foi um baque na vida dos funkeiros. Os contratos de shows minguaram, as aglomerações públicas, historicamente criminalizadas, ganharam ainda a pecha de problema sanitário.
Barulhento e agregador, Kevin foi denunciado pelos novos vizinhos e autuado por infração de medida sanitária. Para manter o contato com seu público, teve de se reinventar, intensificando a presença nas redes sociais, e ficou cada vez mais exposto, emplacando bordões como “quem acordou, acordou” e “esquece, fio”.
“Kevin se tornou uma caricatura do cotidiano. Era o louco que todo mundo conhece. O figurão da quebrada”, avalia Yuri Dinalli, 26, gerente de comunicação da GR6. “Puro, bobo, moleque, ele expressava gestuais e tons de voz que tinham um grau de proximidade com as pessoas. Parecia que você já o conhecia ele de algum lugar.”
Espontâneo e sincero, sarrista e respondão, Kevin virou atração. No Instagram, o MC atingiu mais de 10 milhões de seguidores. Seus stories eram acompanhados pela nação funkeira como novela diária, na qual desfilavam tretas com DJs e MCs e zoeiras em série, além de barracos e declarações de amor à namorada Deolane Bezerra, dez anos mais velha, com quem trocou alianças de noivado (de R$ 25 mil cada uma) no México poucas semanas antes de sua morte.
A ascensão de Kevin ao estrelato do funk o transformou no menino que encantou a quebrada e que deu esperança a tantos outros garotos pobres e sem perspectiva como ele. Sua morte, envolta em um contexto de sexo, drogas e traição, interrompeu seus sonhos de maneira precoce e trágica.
Para além da herança material que fica para família, a mesma que atravessou com ele o Brasil de um extremo a outro, fica a expectativa de qual será a sua herança como artista. “Estamos sem chão”, resume o ex-empresário Gugu.
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